Publicado no Blog antigo 17/10/2018
No mundo todo, os exércitos premiam a bravura, a coragem, a honradez. A bravura é o ato voluntarioso de arriscar-se em favor de uma causa maior, como salvar um companheiro ou resgatar civis dominados por forças inimigas. A coragem é qualificada como a disposição para não abandonar postos e se manter firme quando de situações de tensão extrema, como nos momentos que precedem o ataque inimigo. A honradez é a disposição de se mostrar altivo diante do inimigo, e nunca fazer com ele o que ele faz consigo, considerando aí atos que na cultura própria são deploráveis; a disposição para matar pessoas que já se renderam e a disposição para a tortura implicam na perda da honra.
Diante do debate com Fernando Haddad, Bolsonaro, que esperneia para não ir, vem mostrando que não conseguiu aprender muito com sua estadia no exército. É um milagre que tenha chegado a capitão. Pois não aprendeu nenhum valor desses elencados.
Todavia, a pergunta que se pode fazer, é como que Bolsonaro, que demonstra comportamentos que nada têm de bravura, coragem e honradez, foi produzido pelo Exército Brasileiro, e acabou ganhando algumas patentes, até o dia em que a corporação o mandou embora. Talvez aí tenhamos que diminuir a responsabilidade de Bolsonaro e notar alguns elementos da própria história de nosso Exército.
Diferente de vários outros exércitos, e em especial o oposto do Exército americano, o Exército brasileiro se envolveu em poucos conflitos. Basicamente dois: a Guerra do Paraguai, onde mostrou uma atitude pouco nobre para com os derrotados, se comprometendo com a pilhagem, massacre de crianças e, enfim, o estupro de mulheres indefesas; e a II Guerra Mundial, em que, apesar do heroísmo dos Pracinhas, temos de lembrar que tal corporação teve seus quadros desarmados e alijados de qualquer poder por Vargas, quando do retorno da Itália. Nunca é demais voltar a assinalar que na Guerra do Paraguai, a última coisa que se fez foi cultivar a coragem. Ao contrário, todos os ricos que foram convocados se substituíram pelos seus escravos. Ao final, foram para guerra os pobres e os pretos, que não tinham a mínima ideia a razão de tudo aquilo. Isso foi marcante para o Exército brasileiro, para a sua formação que, a partir daí, nunca mais abriu mão de dar abrigo para um filão capenga em seu interior. Nasceu aí um exército não raro formado por burocratas, e de gente que se acostumou que até na guerra, quando se trata de Brasil, pode-se combater de modo falso. Escravos levaram os nomes de patrões, que foram então condecorados!
A única guerra duradoura em que o Exército brasileiro se meteu foi a de 1964, a “guerra suja” contra os próprios brasileiros. Foi a pior fase do Exército, a que gerou inúmeros torturadores bárbaros. E o mais grave: gerou também um grupo posterior, que não praticou a tortura, mas que foi obrigado praticamente a idolatrar os torturadores (no mundo todo os torturadores são considerados como covardes), para poderem sustentar perante suas próprias famílias a condição de heróis. Essa foi a geração de Bolsonaro. Imagine a mágoa dessa geração: fez Agulhas Negras para voltar para casa como orgulho da família, e voltaram como os que haviam colocado o Brasil na falência – os militares jovens no final dos anos setenta viram o mundo cair sobre suas cabeças: os militares começaram a ser acusados como responsáveis pela desgraça econômica do Brasil. Bolsonaro se transformou em deputado carregando essa marca de derrota, humilhação e vergonha. Começou então a propagar por aí, para salvar sua própria pele moral, que homens como Brilhante Ulstra, mais velhos, haviam sido heróis. Não existe em lugar nenhum do mundo torturador herói. Torturador, no Exército americano, é visto com repulsa pelos oficiais mais respeitados. Sem contar que nos Estados Unidos um oficial que nunca foi em uma guerra é olhado como um babaca.
Tudo isso explica o comportamento de Bolsonaro, sua incapacidade de se por sobre duas pernas e ir à TV enfrentar um simples debate. Afinal, ele não consegue falar “problema”, ele é daqueles que fala “poblema”. Ele sabe que é esse inculto, inábil, que fala mal e, enfim, ele sabe que o que defende é tudo falso. Ele sabe que outros colegas do Exército realmente se mantiveram nobres, com valores altivos. Mas ele não conseguiu. Ele foi o expulso, o magoado, o que tentou reconstruir não a imagem do Exército, mas a imagem da parte podre do Exército. A mágoa desse homem para com tudo é como a mágoa de seu guru, Olavo de Carvalho. Não será bom para o Brasil ter um presidente com tamanho complexo de inferioridade. E muitos militares sabem disso.
Paulo Ghiraldelli Jr., 61, filósofo.