Bolsonaro pode não saber, mas ele está no centro da política mundial. A direita brasileira está na encruzilhada. Seus políticos podem não ter claro, para eles mesmos, o que disputam. Buscam votos e, nessa disputa, procuram mais ou menos escapar da pecha de corruptos. Seus ideólogos insistem na tecla da visão da classe média, que não sabe pensar a política além da disputa sobre quem rouba e quem não rouba. Todavia, em termos históricos, o que vive a direita hoje no Brasil é uma contenda acirrada entre um projeto neoliberal e um projeto anarcocapitalista. Bolsonaro está montado no dorso desse tigre.
A direita vive hoje em termos mundiais, e de modo mais claro no Brasil, algo similar ao que a esquerda viveu durante todo o século XX. Disputávamos entre nós se éramos social-democratas ou comunistas. A direita, hoje, com grande poder de fogo eleitoral, pode se dar ao luxo de criar disputas internas históricas. As pessoas da direita disputam entre estar com o neoliberalismo ou com o anarcocapitalismo.
O projeto neoliberal não é o do estado mínimo, mas do estado que atua claramente em favor da proteção do mercado como o regrador máximo da sociedade. O projeto anarcocapitalista quer o mercado como esteio, sendo que o estado tem de fazer a política de grupos da sociedade que favoreçam em máxima possibilidade certas liberdades que, aparentemente, seriam as liberdades liberais, mas que se fazem valer a selvageria do darwinismo social.
Até pouco tempo, Bolsonaro tinha pés em duas canoas. Em uma, acoplava neofascismo como pauta moral e neoliberalismo como agenda socioeconômica. Em outra, sustentava uma tendência ao anarcocapitalismo. Agora, Bolsonaro parece não conseguir conciliar mais ambas as tendências.
A pauta de costumes ou pauta moral é altamente conservadora. Em resumo máximo dizemos que se trata de uma posição que vai no sentido contrário aos Direitos Humanos em geral. Nega o que ganhamos no século XX em termos de manter a dignidade de minorias dentro da democracia liberal. Isso é o que chamamos de neofascismo de Bolsonaro. Na agenda neoliberal, Bolsonaro colocou no horizonte quatro reformas (previdência, trabalhista, administrativa e tributária) e um projeto de privatizações. Até aí, os ricos e a classe média foram junto com Bolsonaro. Mas ele jamais disse que ficaria nisso. Desde o início do governo ele deus mostras que trazia consigo um fedor de Steve Bannon copiado por Olavo de Carvalho, o seu ideólogo que jamais conseguiu sequer terminar o ensino primário de quatro anos!
Na verdade, Bolsonaro defende um projeto que é o de seu coração, o anarcocapitalismo. Várias pessoas das elites dirigentes, intelectuais liberais, jornalistas mais conservadores e boa parte das classes médias altas tomaram o que seria um “outro projeto” de Bolsonaro como sendo o projeto estatista. Mas nunca o foi. Esses grupos têm medo de olhar para Bolsonaro e verem ali, na figura tosca dele, aquilo que seria uma caricatura deles todos. O medo é o de notarem uma caricatura que revele demais o que eles realmente são. Tiveram receio de olhar para o que seria uma Escola de Chicago Pé de Pano (Paulo Guedes) e só encontrar Rio das Pedras, o bairro do Rio de Janeiro em que o famoso Queiroz mandava de desmandava (os fantasmas de Adriano miliciano e de Marielle percorrem o lugar). Uma parte da direita não quer o “deputado bombadão”, Daniel Silveira, como herói. Uma parte da direita quer parecer civilizada.
O projeto do coração do presidente é o de transformar o Brasil em um lugar em que ele, Bolsonaro, sinta que é familiar. Ele deseja viver em lugar em que tudo lhe soe como benéfico e conhecido. Ele quer a universalização de Rio das Pedras. Deseja fundar a República de Rio das Pedras. O presidente do Brasil quer fazer vingar, para o país como um todo, o projeto do anarcocapitalismo como um projeto que tome Rio das Pedras como modelo prático.
Em Rio das Pedras a liberdade de Bolsonaro é plena. Ali a velocidade não liga para radares, ali o capacete da moto pode não estar presente. Ali ninguém vai ligar para a ausência da cadeirinha do bebê. Muito menos alguém vai chamar o conselho tutelar se um pai tipo Bolsonaro arranca uma máscara de proteção viral de uma criança em uma aglomeração. Mas também ali há liberdade para andar armado. Liberdade para usar a arma contra o mais fraco. Liberdade de milícias para controlar quais os candidatos podem fazer propaganda eleitoral no território. Liberdade de milícias para controlar gás, água, internet e, claro, a “segurança” do local. Liberdade da igreja evangélica para exercer poder sobre o tráfico. Liberdade para a milícia criar o que é mais rentável que tudo: a exploração do espaço da comunidade. Os loteamentos e construções ilegais proliferam, e quem vende tais coisas são os milicianos e políticos. Pastores corretores de imóveis o que não falta lá e no Brasil em geral!
Para construir a democracia de Bolsonaro, uma democracia meramente representativa e esgarçada, é necessário criar uma república deteriorada, a República de Rio das Pedras. Ela tem de ser criada em Brasília. Não no espaço físico de Brasília, mas no espaço jurídico-politico da Nação, que se faz em Brasília.
Essa República de Rio das Pedras dá o modelo de know how para a própria República de Bolsonaro. As igrejas evangélicas lhe deram mão de obra para ministérios – Educação e Da Mulher. Agora, ele quer mais, quer ministro evangélico no STF. Mendonça é candidato. Além disso, o próprio sistema de governança de Bolsonaro nada é senão o mesmo sistema miliciano de Rio das Pedras, quanto à venda de terrenos ilegais. O modo como Bolsonaro lidou com a vacina é, mutatis mutandis, o do negócio imobiliário em Rio das Pedras. Bolsonaro não comprou a vacina propositalmente, deixando que grupos corruptos, incluindo militares, pudessem fazer a “guerra de gangs” que é desbaratada agora na CPI da Covid. Essa “guerra” mostra grupos de milicianos de colarinho branco disputando o mercado ilegal formado no balcão de negócios do governo. Em Rio das Pedras o anúncio é por casas e terrenos. No governo do Brasil o anúncio é no mercado ilegal das vacinas. Eis o procedimento de Rio das Pedras dando o norte para o procedimento de governança do Brasil.
Bolsonaro quer fazer funcionar sua República de Rio das Pedras. Trata-se da versão verde-amarelo do anarcocapitalismo. A direita neoliberal pode acreditar que isso signifique o fim do Brasil como lugar civilizado, e, então, criar movimentos de rua para o Impeachment de Bolsonaro, como a esquerda está fazendo. Nesse caso, o Impeachment aparece no horizonte ainda com mais força. Em uma situação como esta, em que Bolsonaro perde apoio popular, podemos pensar seriamente no Impeachment e fazer parar o projeto de universalização de Rio das Pedras.
Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo, professor, escritor e jornalista. Do Centro de Estudos em Filosofia Americana e do Canal do Filósofo.
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