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Simone Tebet faz a catarse de Miranda

Reduzir a intervenção da senadora Simone Tebet a um ato que qualquer outro parlamentar poderia fazer é realmente não saber nada sobre a presença do corpo da mulher e sobre filosofia da mídia contemporânea.

Segundo Franco Berardi há na rede atual um excesso de semiótica em detrimento de semântica. Muitos símbolos e pouca significação. Segundo Maurizio Lazzarato há hoje duas formas de subjetivação, a sujeição social e a maquínica. Esta última vive sob o envólucro da fusão entre homem e máquina, que é o imperativo de nossos tempos. As teses são relativamente diferentes, desses dois autores herdeiros do operaísmo italiano dos anos setenta. Mas posso uni-las dizendo que estamos sob uma relação capitalista que nos colocou em fusão com algoritmos, e que muito do que ocorre conosco nos atravessa sem nos dar bola, mudando nossa vida, e sem considerar nossa subjetividade, embora a transformandoa posteriori radicalmente. Na relação com a máquina, em especial a internet, estamos diante de uma simbologia que nos tira do discurso, da representação, da história e da geografia. Um índice no computador passa ao largo de nossa consciência e nos faz acordar na miséria ou no desespero. Mas ainda nos mantemos na relação conosco mesmo, sem o peso muito ostensivo da máquina, mesmo que raramente. Simone Tebet agiu inconscientemente nesse segundo registro, ainda que tenha confessado que sentou mais à frente, perto de Miranda, para “acolhe-lo”. No vocabulário de Berardi diríamos que Simone Tebet procurou sair da semiótica para entrar no campo semântico. No vocabulário de Lazzarato diríamos que ela buscou escapar das semióticas a-significantes, das máquinas, para ir para a semiótica significante, das relações sociais e históricas. Usando dessas últimas, ela deixou que seu corpo se aproximasse do de Miranda, como ela mesma disse, “para acolhe-lo”. Deu certo! A subjetividade maquínica se afastou e a subjetividade do homem-Miranda ali se desencantou. Ela o invadiu com sua imagem, com seu corpo, talvez com seu cheiro.

As frases de Tebet foram simples. Outro poderia dizer aquilo. Mas quem disse foi ela, pois tinha que ser aquele corpo, não outro a fazer o que fez. Ora, o senador que falou antes dela não arrancou nada, ao contrário, afastou Miranda da verdade que ele tinha que pronunciar. Mas Tebet invertou a seta. Com seu corpo de mulher, mãe, com seus seios alimentadores do bebê, com seus seios que fazem dos homens se erotizarem exatamente porque foram bebês, com sua autoridade de professora (como toda mulher, em termos de imagem), com seu aspecto doce porém firme de irmã mais velha, com tudo isso, suas frases ganharam o campo da semiótica significante. A imagem produziu efeitos em Miranda. Foi a imagem corporal que conseguiu colocar frases simples fazendo o evento em questão se tornar um outro evento.

Ela disse: “não se preocupe com o Conselho de Ética da Câmara”, nós cuidamos dele, eu cuido dele. Foi a garantia da mãe, e eis que o corpo da mãe estava ali.

Ela disse: “pode falar o nome [do político envolvido] porque nós já sabemos”. Foi a palavra da professora ou da esposa ou da irmã, e eis que o corpo da professora ou da esposa ou da irmã estava ali.

Essas duas frases poderiam ser ditas por um homem ou por uma mulher sem os traços físicos de Simone, duvido que fizesse efeito. Mas a semiótica significante agiu ali e fez a memória de Miranda baixar a guarda. Sua memória o atropelou e impõs uma simbologia, uma imaginação, que o trouxe diante das mulheres da sua vida, contra as quais ele não poderia mentir. Todos nós somos um Miranda. Sabemos o que ele passou ali porque sabemos o que passamos com as mulheres citadas. E veio então o momento catártico. Ele chorou. Não pelo sofrimento que iria passar, mas pelo tanto que o corpo de mulheres do passado puderam acolhe-lo, real ou imaginariamente. Pois também através de experiências não vividas, mas desejadas, podemos invocar momentos que nos levam à catarse.

Catarse é transformação. E a transformação de Miranda ocorreu ali. De defenso da reforma administrativa neoliberal ele saiu dali contra ela. De defensor do presidente ele saiu dali contra ele. Miranda foi engolido e catarticamente degustado pelos bicos dos seios de Simone Tebet e renasceu como homem feito de carne. Quando ela disse, para finalizar, que o irmão dele seria o herói, e ele não, mas que agora ele também seria o herói, ele compreendeu que havia se redimido. A CPI reacendeu.

O presidente Aziz compreendeu o momento, ainda que de modo atabalhoado, e passou a homenagear as mulheres. Ele perebeu que havia ocorrido algo só possível ao corpo delas na CPI.

Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo