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Felipe Neto, FHC e Lula – tudo boa gente!

Pedro Nery é um jovem doutor que escreve no Estadão. Em um seu curioso e informativo artigo, “De FHC a Felipe Neto, o que abrange o termo social-democracia” (15/06/2021), ele sugere o quanto o já não tão garoto youtuber e o sênior professor e ex-presidente têm em comum. Ambos estão voltados ao desejo de uma economia de mercado que não seria neoliberal, pois estaria acoplada a um estado capaz de seguridade social. Ambos seriam admiradores do homem que estaria agora transformando os Estados Unidos em uma social-democracia de tipo europeia, Joe Biden.

Não sou o Bolsonaro nem o Brizola. Um não pensa, o outro pensava, mas fazia isso mais ou menos parecido com Bolsonaro, caso esse pensasse: se há um lado que não gosto, então sem analisar muito, vou para o outro lado, seja qual for a proposta em questão. Não, não ajo assim. Todavia, nesse caso, dá vontade de agir. Se Felipe Neto e FHC são social-democratas, então essa tal de social-democracia não presta.

Bem, se não é para agir de impulso, então temos que ver o que ambos acreditam que é uma social-democracia. No caso de Felipe Neto, não dá para saber. Ele apenas fala o termo, mas duvido que consiga produzir mais que um tuíte sobre o assunto, e se descuidar, errado. No caso de FHC, ele chegou a sugerir que o PT fosse o mais próximo da social-democracia européia. Ele mesmo foi um neoliberal no governo, foi um privatizante. Sua definição de social-democracia é vaga o suficiente para salvar sua biografia de mostrar uma traição. Nery reproduz a coisa:

“Há 30 anos, em uma cartilha sobre o tema, o ex-presidente descreveu a social-democracia como corrente que “reconhece as leis do mercado e o dinamismo da empresa” e que “se preocupa em reforçar e tornar mais eficiente a atuação do Estado nas áreas diretamente ligadas ao bem-estar social”. Acompanhar transformações e eliminar privilégios também aparecem na descrição.”

A social-democracia é uma espécie de “regime do meio”, na consciência do senso comum. Um pouco de estatismo, que alguns acreditam que tem a ver com o socialismo, e um pouco de economia de mercado, que se identifica com a tal agilidade de fazer o produto que se pede chegar na porta de nossa casa – de preferência pela Amazon e pelo I-Food -, coisa que uma companhia soviética não conseguiria. É uma noção pobre, mas, afinal, se um regime do meio pega o homem do meio, o homem do médio termo – o medíocre.

O que Felipe Neto não sabe e não chegará a saber, ainda que fique cada dia mais rico com o mundo atual, é que a social-democracia tem uma barreira contra ela no mundo atual: o capitalismo financeiro, que é o campo no qual o capital acumula hoje em dia, e o capital é um “sujeito autômato” (Marx). Ele vive para acumular e, fazendo assim, tende a caminhar para sucessivas crises (a de 2008 tem tudo para se repetir logo), mas ele não tem como agir de outro modo. Ele funciona com a voracidade da vontade de potência de Nietzsche. O mercado capitalista nao vive em função de produtos, mas de dinheiro – dinheiro que quer virar mais dinheiro. Estancar isso para criar um regime social-democrata é algo bem difícil hoje em dia, e só foi possível durante os chamados “trinta anos de ouro do capitalismo”, que funcionou especialmente entre 1945 e 1970. Mas os desdobramentos desse período foram todos superados, e a crise dessa situação culminou com a emergência do neoliberalismo. Agora, já há uns bons anos, vivemos com a crise deste, agora que ele, o neoliberalismo é já vigente no mundo todo em uma economia globalizada (a China não escapará).

Os países que possuem perfil social-democrata são poucos. São algumas democracias ricas do norte europeu. Assim mesmo, são social-democracias bem modificadas em relação ao que foram. Se há algo ali que ainda é de caráter social-democrata, isso se deve não pela manutenção de políticas e sim pela entrada da mulher no mercado de trabalho. Muito do que o estado deixou de fazer pelos trabalhadores, teve de fazer pelas trabalhadoras, por conta de sua ligação com a prole – da amamentação à universidade. Se a creche a escola pública voltaram a existir, ou voltaram a ser eficazes, isso foi por conta da mulher no trabalho. Uma forma de fazer o estado voltar a gastar com a população. No entanto, em termos de seguridade social, só o Brasil, sem social-democracia mas com uma Constituição de 1988 bastante inteligente, conseguiu escapar do sistema de capitalização e manter o sistema de solidariedade, que agora foi bem atingido pelos petardos de Paulo Guedes e do Congresso atual.

Os países social-democratas hoje possuem, todos eles, traços do neoliberalismo. Uns mais outros menos. Nixon desreferencializou o dólar, desvinvulando-o do ouro, e com isso criou as possibilidades do mercado financeiro virar um mercado de fato. Os bancos e financiadoras passaram a comandar o capitalismo. Thatcher e Reagan de fato mudaram o mundo, criando o regime neoliberal, ou seja, a proposta política para servir de guia a esse mundo desrefrencializado. No livro A democracia de Bolsonaro (CEFA Editorial), em especial na Introdução, explico as modificações dos últimos anos. No livro Semiocapitalismo (CEFA Editorial 2021) (a ser lançado 17/06) eu completo o serviço. Está tudo ali, de forma didática. Lendo esses livros, pode-se ver como que a economia globalizada atual teria grande dificuldade de se adaptar novamente a uma vida social-democrata como a que deu ganhos aos trabalhadores, durante os “trinta anos de ouro”.

Caso Felipe Neto e FHC acreditem que eleger o Lula vai fazer o país caminhar para uma posicão inédita mundialmente, e que o ex-presidente-operário vai criar um governo social-democrata, eles não sabem o que estão falando. Lula fez no seu governo um neoliberalismo mitigado, mas jamais um governo social-democrata. E pelo que vem falando, essa é ainda sua ideia. Talvez Lula seja até mais realista político que FHC. E certamente sabe pensar melhor que Felipe Neto, o que nesse caso não é merito, ninguém tem mérito por não sair latindo vendo roda de carro.

A ideia de afastar os extremos é uma ideia tola. O capitalismo dificilmente pode ser enfrentado sem que a política dos extremos – esse medo que faz tremer os medíocres – se ponha na jogada. Sem que propostas radicais sejam consideradas, adotamos a ditadura do centro, e não a democracia. A melhor saída para os Estados Unidos não era Biden, mas os socialistas democratas. Inclusive eleitoralmente eles tinham mais chance que Biden diante de Trump. A covid cortou a campanha de Sanders. E derrotou Trump porque este adotou o negacionismo. No Brasil, não há forças políticas na esquerda mais aguerrida, não no momento – mas a semana que vem é outro dia! Mas, temos de admitir, Lula, como candidato mais conhecido, pode posar de esquerda no imaginário popular mesmo se apresentar de novo Meirelles a tira colo e mesmo se fizer nascer mais um PSOL, após mandar para o Congresso mais uma pauta para destruir nosso regime de proteção do traballhador, com já fez um dia.

Mas o caso é que os que leem livrinhos social democratas, aqueles que fariam até o Luciano Huck ser um social democrata, já que o Felipe Neto também é, não encontram nesses livros o drama que infelicita essa utopia dos do meio, os medíocres. A equação do mercado é D-M-D’, e ela tinha a ver com a social-democracia. Agora, na atual fase do capitalismo, com a financeirização dominando, a equação é D-D’. Nesse caso, o dinheiro gera dinheiro sem ter de passar pela mercadoria. Era o sonho do capital, e agora é o sonho realizado. É difícil chegar para o Sr. Capital e lhe pedir para deixar de realizar um sonho, principalmente agora! Nesse momento, o Sr. Capital está curtindo esse sonho realizado. Nem Huck e nem Felipe Neto podem entender isso. FHC sabe disso, creio eu, mas não vai nunca escrever algo sincero sobre tal assunto.

Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo