Não são poucos os políticos e jornalistas que não querem olhar para Bolsonaro e ver o que ele faz e o que ele é. Mas esta não é uma prerrogativa só de políticos e jornalistas, agora também os cientistas adotaram a mesma postura.
Os políticos e jornalistas imaginam um Bolsonaro autoritário que quer ser ditador através de golpe. Não entenderam nada. Não querem olhar para a figura do Bolsonaro. Na verdade ele é bonachão, preguiçoso, falador e incapaz de administrar qualquer coisa. Preparar um golpe e administrar o país com organização ditatorial não é seu forte. Claro que não precisa disso, uma vez que já está no governo e as classes sociais que o sustentam, as elites econômicas, estão razoavelmente contentes com ele.
Bolsonaro é frustrado sexualmente. Ele encontra prazer contrariando regras racionais. Tudo que é civilizatório e o que fez fracassar na vida é motivo de contrariedade, e agora como presidente ele se dedica a fazer da vida da nação um caos, como é o caos dos lugares que sempre o elegeram: vários bairros do Rio de Janeiro, com destaque para Rio das Pedras. Bolsonaro se adaptou bem ao neoliberalismo, ou melhor, ao anarcocapitalismo de seu guru Olavo de Carvalho, exatamente porque é a ideologia de apologia da liberdade individual máxima, em detrimento de toda organização necessária a uma sociedade que quer funcionar como sociedade. Bolsonaro não quer o fim da democracia, ele quer o fim da república. As instituições republicanas devem perecer e a democracia representativa aliada ao darwinismo social devem continuar. Que existam eleições e que cada um seja o “empresário de si mesmo”, tendo como controladores sociais a milícia, as igrejas evangélicas e o capital financeiro. O neofascismo moral de Bolsonaro é feliz nesse regime.
Cientistas também ignoram tudo isso, e inventaram um Bolsonaro tão imaginário quanto o ditador inventado pelos políticos e jornalistas. Natália Pasternack criou o Bolsonaro negacionista da ciência. Mas o Jair nunca entrou nessa polêmica ciência versus não-ciência. Ele sempre trabalhou com outra dualidade: liberdade versus não-liberdade. Todas as vezes que ele defendeu o uso de cloroquina ou qualquer outra medida estranha ao bom senso médico e científico, ele o fez invocando a liberdade pessoal do paciente e a autonomia médica. Inclusive, quando ele próprio ficou doente, fez questão de frisar que seu médico é que estava lhe receitando cloroquina, e que os exames necessários para a aplicação vinham sendo feitos com médicos e hospitais idôneos. Era verdade.
O negacionismo típico do QAnon e de seitas americanas, inclusive o do Olavo, nunca foi adotado por Bolsonaro. E a prova disso foi a criação do Ministério da Saúde Paralelo. Ali ele compareceu não para falar contra a ciência, mas para dar espaço para Osmar Terra, médico, e para o Zanotto, cientista. Ambos falaram na condição de porta vozes da ciência. Como ele mesmo disse, “eu procurei homens com o conhecimento” sobre o assunto. O discurso de Zanotto, nesse dia, não foi negacionista, mas se pautou por falar dos perigos (reais) de vacinas. Falou o que o presidente queria ouvir, claro! Mas falou não no âmbito do negacionismo. O que disse estava dentro de um escopo distinto daquele pedido para um bom senso necessário naquele momento e depois.
O erro de Natália Pasternack advém do fato de que todo cientista que ainda navega no século XIX não consegue sair do positivismo. É um erro que nem é propriamente dela, mas do tipo de formação que recebeu. Boa parte dos cientistas possuem uma visão ingênua a respeito da ciência. Acham que a ciência é neutra, que a ciência não tem lados etc. Para se contraporem a um tonto como o senador Girão, acabam fazendo frases bombásticas, lacradoras, mas que não se sustentam no âmbito das discussões da metaciência e da filosofia. A ciência não é neutra e ela tem sim lados. Ele é feita por homens, e não por deuses. A ciência obedece a visão humana do pesquisador tanto na hora que ele inicia a pesquisa quanto na hora que ele a conclui. A busca pela objetividade é um ideal. E a objetividade não implica em neutralidade.
O exemplo que dei no artigo sobre o erro da Musa da CPI, a bela Luana, vale agora para os novos candidatos a serem também musas e musos da mesma instância no senado. Repito aqui o exemplo, uma vez que ele é fácil de ser entendido. É o que segue.
Quando eu era criança o que ensinavam na escola era que o Homem Moderno havia se acasalado com o Homem de Neanderthal, mas que os frutos tinham sido híbridos. Nesse sentido, nós todos éramos iguais, ou seja, pertencentes ao campo genético do Homem Moderno. Hoje a ciência ensina outra coisa. Sabemos que os humanos não são iguais do ponto de vista antropológico. O Homem Moderno gerou filhos com o Homem de Neanderthal, e que esses filhos, ao contrário do que a ciência dizia há alguns anos, nada tiveram de híbridos. Existe hoje portanto uma enorme carga genética do Neanderthal entre nós. Se o Neanderthal é responsável por mais ou menos inteligência entre nós, inclusive entre grupos humanos, isso não sabemos. Mas a ideia da igualdade do homem, pregada por religiões e por certas filosofias políticas liberais e de esquerda, não mais se sustentam. Então, a ciência não está sendo neutra. Ela está se posicionando claramente como adotando um lado da política. Ela está contra a ideia da igualdade natural entre os homens. O mito da neutralidade da ciência se faz realmente, agora, como mito.
Nós podemos ainda lutar pela igualdade entre homens, mas agora, se recorremos à ciência, devemos fazer pelo motivo inverso ao que fazíamos antes. No passado, invocávamos a ciència para lembrar a igualdade natural, agora, se recorremos a ciência nos deparamos com a desigualdade natural e, então, temos de postular a igualdade como puro ideal político compensatório, em favor da justiça social. Antes queríamos realizar o que a ciência dizia que somos. Hoje, se somos liberais ou de esquerda, temos de realizar o ideal de justiça social a despeito da conclusão da antropologia. Nesse quesito a ciência mudou de lado e nos abandonou como liberais ou de esquerda.
Algumas pessoas acham que, ainda assim, a ciência é neutra. Que ela estabeleceu uma verdade e só depois de um tempo estabeleceu outra verdade – isso para os positivistas é a mostragem da neutralidade científica. Mas isso diz respeito à objetividade da ciência, não à neutralidade. Podemos considerar que a ciência do tempo que eu era criança alcançou um nivel de objetividade que a permitiu a uma conclusão, e que depois a objetividade (com exames de DNA) ampliou seu potencial, e então outra conclusão se impôs. Essa mudança no grau da objetividade foi justamente o motivo para que a neutralidade se mostrasse uma falácia.
Muitos cientistas acham que a ciência é neutra porque, quando eles concluem, imaginam que uma tal conclusão veio por um trajeto computacional, feito por algoritmos, e que eles não formularam hipóteses que conduziram a resultados e que, ao final, na conclusão, eles não estão diante de algo que foram eles mesmos que conseguiram alcançar. Eles fetichizam os objetos que manipulam. Eles se perdem diante de certa aparente autonomia da natureza. Caso fossem mais atentos, mais treinados em filosofia, perceberiam que as conclusões a que chegam estão eivadas de decisões exclusivamente humanas. Essas conclusões podem ser objetivas e, ainda assim, nada neutras.
Esse erro diante da ciência, feito pelos positivistas, se soma ao erro de acreditar que Bolsonaro está no debate em que o negacionismo se insere. Com esses dois erros, o edifício dos cientistas na CPI, até agora, pode conquistar adeptos na imprensa, no auê jornalístico, mas diante de uma análise mais técnica, mostra-se uma construção de pés de barro.
Estamos sempre combatendo Bolsonaro sem combater o bolsonarismo, exatamente porque queremos derrotar o adversário com lacração fácil. Enquanto fazemos isso, o bolsonarismo vai se fortalecendo e esperando Bolsonaro passar, para montar outro cavalo.
Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo