Pular para o conteúdo

A Era dos Javalis

“Não levantar falso testemunho” é mandamento bíblico. “Não mentir nem mesmo em favor da humanidade” é regra lógica que, segundo Kant, está inscrita na consciência filosófica. Nos dois casos, trata-se de enunciados produzidos por aqueles que, se observados por Nietzsche, seriam tomados como normas inócuas. Toda nossa linguagem é social e sua função é nos fazer ser o que somos, animais de rebanho. Como viveríamos em rebanho, em comunidade, sem a mentira? Nietzsche insistiu nesse ponto, e com boa dose de razão!

Essa disputa entre as concepções a respeito da mentira está hoje ultrapassada. Inventamos algo que é a institucionalização do absurdo. As frases são lançadas como grunhidos diante de javalis. E algo se fixa ou não se fixa segundo o barulho que os javalis fazem. Inaugura-se assim a Era da Pós-Verdade. Não se pode mentir, mas ao mesmo tempo ninguém mais sabe o que é mentira ou verdade. Tudo que sabemos é que se há javalis, pode haver espetáculo. Em outras palavras: há a selvageria, fora disso, não há o que possa interessar.

A tese do biocapitalismo e do semiocapitalismo talvez possam explicar algo sobre isso.

O termo biocapitalismo tem sido usado (com Toni Negri à frente) para caracterizar o nosso mundo atual, em que o capital não explora mais a fábrica, mas toda a sociedade e durante todo o tempo. Não é o tempo de trabalho que conta, mas a vida inteira passa a ser um reduto do vampirismo do capital. A figura do “prosumidor” entra em destaque. Somos nós, os que consomem e, ao consumirem, estão produzindo. Todos estamos conectados na rede virtual e nada fazemos sem isso. A própria rede é uma porta de entrada para a produção e extração da mais valia social. Fazemos não mais trabalho excedente, vivemos na rede e tudo que fazemos nela gera lucro a ser carreado pelo sistema de propriedade privada.

O termo semiocapitalimo tem sido usado (com Franco Berardi à frente) para caracterizar nossa vida que é antes de tudo regrada pela conexão e não mais pela conjunção. Não vivemos mais com nossos corpos em conjunto, o que nos garantia sentimentos variados e solidariedade. Nossa vida é agora na base da conexão. Estamos ligados às máquinas o tempo todo e, para tal, tivemos de alterar nossa subjetividade de modo que a conexão se efetive. Ou seja, passamos a nos relacionar antes pela semiótica que pela semântica. Recebemos estimulos que são símbolos, mas que não contam nenhuma história. Somos sujeitos maquínicos, não mais seres de induções corporais, aninhamento, amor etc. Se queremos sorrir, não sorrimos, mandamos um emoticon com carinha sorridente!

Assim, desprovidos de semântica e convidados a produzir no sistema 24/7, nos tornamos altamente tecnológicos e hiperativos. Achamo-nos sofisticados. Mas, se gravamos nossa atuação em filme e depois assistimos com cuidado, veremos apenas javalis tentando trucidar uma presa. Somos nós na nova “sociedade do espetáculo”. Digo nova por uma razão: a analisada por Debord fazia o espetáculo da mercadoria, ao vivo ou em imagens derivadas. A nova sociedade do espetáculo transformou o próprio espetáculo em mercadoria. Compramos e vendemos o nosso show de javalis.

O nosso show de javalis é este, o de não saber mais se dizemos mentiras ou verdades, pois estamos todos preocupados em fazer “oinc-oinc”, a produzir o som animalesco. Quando produzimos bastante desse som, o Google nos avisa que fomos computados, que somos alguém no mundo.

Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo