Publicado originalmente no blog antigo dia 09/08/2018
O professor de Ética Renato Janine Ribeiro, lá pelos tempos do “Mensalão”, saiu na imprensa com a tese de que o governo era até menos corrupto que a população. Cada um de nós, na nossa vidinha comum, segundo ele, agiríamos de modo desonesto, bem mais que o governo, que seria então apenas um reflexo nosso. Algum tempo depois ele virou ministro do Governo Dilma. Sim! Dilma!
O palestrante Karnal, herói do Zorra da Globo, disse algo semelhante. Falou que o governo não poderia ser exclusivamente culpado da corrupção, uma vez que ele via alunos que lhe entregavam trabalhos copiados da Internet. Um aluno lhe respondeu na própria Internet: “eu queria lhe entregar o trabalho que fiz, professor, mas o senhor nunca está na Unicamp, dado que tem 258 palestras no ano – a maior parte delas sobre ética”.
Depois veio Janaína Paschoal. Olha o que ela disse: “Bolsonaro não é machista, estive com ele pessoalmente e ele me tratou bem”. Sim, Janaína fingiu que não ouviu as declarações públicas de Bolsonaro, durante 30 anos, e mediu tudo por conta do seu próprio umbigo, ou melhor, rosto, pois Bolsonaro não a tratou pelo umbigo. Ela é séria.
Finalmente chegamos ao General Mourão. Ele se diz descendente de índio para ganhar autoridade e falar que nossa cultura, que é fusão do europeu branco, do índio e do negro, sofre o mal da “indolência”. Cada brasileiro trabalharia menos que outros do mundo por indolência gerada pela mistura de raças. Ele ainda afirma que “precisamos superar isso”. Não tenho coragem de perguntar a ele como faríamos isso. Temo que a resposta o leve para a cadeia.
Nos quatro casos, o que temos? A incapacidade de pensar conceitualmente. Erros graves de raciocínio. Toma-se o que é do âmbito do indivíduo para diminuir responsabilidades coletivas, que se expressam na universalidade de relações advogadas pelo estado. Confunde-se esferas distintas na sociedade burguesa moderna: o campo do privado com o campo do público.
Os indivíduos corruptos de um país são duplamente corruptos se, uma vez no governo, fazem corrupção. Essa segunda corrupção não exclusivamente moral, é uma questão de juízo ético político, pois não compromete um ou outro, mas todos, tanto diretamente quanto indiretamente. Uma tal corrupção no âmbito governamental ou adjacentes rouba de indivíduos indiretamente e, ao mesmo tempo, solapa a confiança nas instituições. Um país tem de ter instituições com uma legislação que proteja o cidadão quando um dos cidadãos, tendo se tornado presidentes ou governador etc., comete crime ou deixa que sejam cometidos por seus apaniguados. Eis o caso: Trump negociou com os russos, cometeu crime de traição (está cada vez mais claro isso). Faz uma política desastrosa nacional e internacionalmente. Mas a população americana continua confiando nas Instituições, que podem e estão reagindo aos desmandos dele. E isso não tem nada a ver com o fato de muitos americanos, talvez, não deixarem de cometer pequenas infrações no dia a dia.
Bem, até aí acima, tivemos Karnal e Janine. Agora, vamos a Mourão e Janaína. São casos bem semelhantes: o mundo coletivo, a sociedade e o estado não existem. Só existem eles dois, Mourão e Janaína. O general diz mais ou menos isso: eu sou de sangue índio, então, tudo que eu falar contra minorias, não deve ser tomado como preconceito e erro. Em outras palavras, eis Janaína: minha experiência pessoal, minha vida, é o parâmetro para eu poder se perdoada por qualquer crime que executo como político que fala em público, candidato à vice-presidência da República. Posso falar coisas racistas se eu, sendo de minoria, estaria autorizado a tal – afinal, como eu, um ser racional, falaria contra eu mesmo? Janaína faz o mesmo raciocínio: Bolsonaro foi uma moça comigo, então, dessa experiência pessoal, em situação formal, só minha, posso concluir que Bolsonaro não é machista. Ou seja, a vida coletiva, a vida no estado, os pronunciamentos públicos de Bolsonaro nada valem, mesmo que ele seja um homem público.
Nos quatro casos, a confusão mental é uma só: o que é conceitual não é levado em conta, pois não se pensa conceitualmente. Trata-se do que é de importância na vida individual de cada um, no âmbito das questões privadas ou particulares, sem dar a devida importância do que é do âmbito do esperado na vida pública, o que é esperado nas relações que são do âmbito de pertinência das instituições. A esfera pública e a esfera privada possuem legislações diferentes, pois o estrago que erros nela cometidos causam são diferentes – muito diferentes e bem distintos.
Esse erro conceitual dos quatro citados tem raízes históricas no campo das ideias, no campo filosófico: o indivíduo e sua vida privada são o que é autêntico, verdadeiro; o que é público pertence ao mundo das aparências. Norbert Elias e Richard Sennett mostram isso em seus livros, como que, para culpar (Karnal e Janine) como para desculpar (Janaína e Mourão) tudo se volta para o domínio privado, particular, íntimo, caseiro. Ou seja, é a vitória de um tipo de apelo de Rousseau: no coração, no âmbito das relações íntimas, é que vemos quem é quem. Para o bem ou para o mal, o que se faz publicamente é só pantomina, deve ser desconsiderado. O que é público é dos nobres, dos que usam máscara (no baile), e não dos burgueses, os que mostram a cara limpa no trabalho, sem maquiagem. O mundo das aparências, da nobreza e do clero, é o mundo que nada vale, o que vale, para a culpa ou desculpa, é o que se é a quatro paredes. Daí o personagem do Big Brother sempre dizer sua virtude: fui autêntico, me mostrei, não escondi meu rosto, “fui eu mesma”. E daí? Expor o íntimo é valor? Só para os herdeiros de um tipo de rousseauísmo.
Voltemos ao caso de modo mais simples.
Um rapaz xinga um negro no bar de “macaco”. Diz isso com raiva. O negro vai à justiça: é racismo. Um presidente da República faz isso no bar. O negro vai à Justiça: é racismo. O presidente não xinga ninguém individualmente, mas diz que o negro é indolente, em um discurso na TV. Aí cada negro pode se sentir ofendido, mas o próprio Estado precisa reagir antes de cada indivíduo, pois a questão é que a figura do Presidente da República não pode fomentar nada que dê margem para o racismo. A Procuradoria da República tem de agir. Daí para diante, o Presidente pode postar todo dia a foto dele abraçando um negro. Não adianta mais, suas atitudes individuais enquanto pessoa comum são distintas das atitudes dele como Presidente. Ele atingiu os negros de dupla maneira, como pessoa e como Presidente, mas as instâncias que irão reclamar dele são diferentes. Pois cabe à Procuradoria, antes de tudo, proteger todos coletivamente protegendo a figura da Presidência, o cargo, inclusive do próprio homem que o ocupa. Tudo isso é entendido se se pensa por conceitos. Janaína, Mourão, Janine e Karnal não conseguem pensar por conceitos.
Mais explicado que isso, acho que é impossível. Será que ao menos os quatro conseguirão entender?
Paulo Ghiraldelli Jr, 60, filósofo.