Não gostaria de ver a Yamaguchi sem máscara. Mas sim a Luana, a médica que esteve na CPI logo depois da Yamaguchi. Bela moça e com dizeres bastante corretos sobre tudo sobre a sua especialização médica. Inclusive a respeito de um tópico que sempre dá problema: a tal autonomia médica. Ela fez o elenco de elementos que crivam a autonomia médica. Chamou esses elementos de pilares:
“Autonomia médica faz parte da nossa prática, mas não é licença para experimentação. A autonomia precisa ser defendida sim, mas com base em alguns pilares. No pilar da plausibilidade teórica do uso daquela medicação, do volume de conhecimento científico acumulado até aquele momento, no pilar da ética e no pilar da responsabilização. Quando junta tudo isso, você tem direito a uma autonomia e precisa fazer o melhor para seu paciente” (O Globo, 02/06/2021).
Essa observação da Luana é importante, mas, no caso, precisa ser analisada em confronto com uma outra sua fala, no mesmo contexto do depoimento na CPI. Pois ao final do depoimento ela chegou a dizer: “Ciência não tem lado. Ciência é bem ou mal feita. É ferramenta de conhecimento para servir a população, prezando a vida e a qualidade de vida.” Mas aqui a médica extrapolou, falou do que não sabe. O campo médico não é o campo da filosofia da medicina. Ciência não tem lado? Não mesmo?
Estamos de volta aí ao positivismo científico dos médicos, que os fazem sem querer ficar arrogantes e, não raro, incapazes de prestar melhor atenção em conceitos como sindemia, adotando ainda a ideia de pandemia.
A ideia de que ciência não tem lado bate de frente com a idea dos pilares que devem ser observados para que a autonomia do médico possa prevalecer, em especial o pilar ético. Dizer que ciência não tem lado e dizer que autonomia médica se faz, entre outras coisas, pelo envolvimento com a ética, é uma entrada por uma contradição não dialética, uma simples contradição ética, um erro lógico. A ética implica em escolha de valores, e se ela criva a ciência, então a ciência se compromete com escolha e, por isso, não é neutra e tem lado. Se mantemos a ética, ciência tem lado. Para que a ciência não tenha lado, ela teria de estar acima da ética. Nisso a Luana não pensou. Pois ela é médica. Ela sabe. Ela tem inteligência. Falta a ela o pensamento, como diria Hanna Arendt.
A ciência pode inclusive ser declarada não neutra até mesmo se pensarmos nela própria, antes de qualquer reflexão ética. Eis um exemplo terrível. Hoje sabemos que os humanos não são iguais do ponto de vista antropológico. O Homem Moderno gerou filhos com o homem de Neanderthal, e que esses filhos, ao contrário do que a ciência dizia há alguns anos, não eram híbridos. Existe hoje portanto uma enorme carga genética do Neanderthal entre nós. Se o Neanderthal é responsável por mais ou menos inteligência entre nós, inclusive entre grupos humanos, isso não sabemos. Mas a ideia da igualdade do homem, pregada por religiões e por certas filosofias políticas liberais e de esquerda, não mais se sustentam. Então, a ciência não está sendo neutra. Ela está se posicionando claramente como adotando um lado da política. Ela está contra a ideia da igualdade natural entre os homens. O mito da neutralidade da ciência se faz realmente, agora, como mito.
Caso a ciência fosse feita somente por computadores, ela seguiria um algoritmo capaz de parar na seguinte conclusão: o Homem Moderno não é puro, mas é também um misto que inclui o Neanderthal. Mas, uma vez que a ciência ainda não foi reduzida a algoritmos (ou a uma instância metafísica, ou a Deus), e talvez até deixe de ser ciência se isso ocorrer, então, ela terá sido feita por homens. O cientista não irá estancar seu pensamento (como faria o algoritmo), ele rapidamente irá pensar: “meu Deus! a biologia nazista que considerava grupos mais dotados que outros pode reaparecer aqui, e não estará de todo errada”. Ele verá a ciência perder a neutralidade na sua cara. Ela mudou de posição! Ele poderá, então, desejar não revelar essa sua descoberta e bem menos ainda seu espanto. Mas, se a biologia nazista for algo distante, se já não incomodar mais ninguém por conta do nazismo amedrontar as pessoas por outros de seus postulados e não os vindos da biologia do campo de concentração, então o cientista até poderá sair a público e anunciar que a ciência mudou de lado! Ela não mais está na base das postulações políticas, religiosas e filosóficas a respeito da igualdade natural do homem.
Então, a ciência nos provou que a direita está correta? Uns podem ser mais inteligentes que outros, talvez?
Somos diferentes para além de tudo que pensávamos até pouco tempo? Vamos obedecer a ciência e construir uma civilização que possa endossar a ciência? Deixemos de querer igualar certas condições, uma vez que há grupos que geneticamente podem mesmo ser melhor dotados diante de certas vicissitudes da vida?
Penso que não!
Por que não? Ora, porque se há grupos de homens que possuem uma carga genética que não os favorece, isso em nada me diz que não posso desejar uma sociedade em que isso seja exatamente diminuído por políticas públicas que atenuem qualquer injustiça social verificada no contexto histórico. Ou seja: a ciência pode dizer que há grupos humanos inteligentes e estúpidos, e com isso ele indica que tem lado, mas posso, por desejo de utopia, querer construir uma sociedade que, levando em conta essa conclusão científica, ainda mantenha uma posição à esquerda. Aliás, posso até dizer que justamente por conta da resposta da ciência é que me sinto mais impelido que antes em contrariar a sociedade que quer premiar de início os mais capazes. Posso por a história contra a natureza, por que não? Teimosia nem sempre é defeito.
Uma série de outros exemplos podem ser levantados, em todas as áreas científicas, para mostrar que a tal neutralidade científica tem dificuldade de se manter, ao menos hoje em dia, como ela tentou se manter no século XIX. Perder o pé na neutralidade científica não é necessariamente um mal.
É uma pena que a médica Luana, como tantos na profissão dela, ainda sejam formadas diante de uma ciência cuja consciência está lá no tempo pré-Marx e pré-Nietzsche.
Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo