Identitaristas não defendem minorias. Eles são pessoas que vem de minorias, mas o projeto deles não é o da política que visa a ampliação da democracia nos seus benefícios para as minorias. O projeto de cada um deles é o projeto identitário, ou seja, o do idem, o idêntico, o igual. Eles cultivam o mesmo. Não entendem o jogo dialático do eu e do outro, que nos torna humanos. Esquecem-se que minorias precisam de maiorias para se firmarem como minorias com direitos. Eles promovem a si mesmos como indivíduos absolutos, num claro acena ao antigo self made man do liberalismo americano pré-New Deal, ou do ‘empresário de si mesmo’ do neoliberalismo de agora.
Por isso as questões culturais e antropológicas não entram na cabeça de identitaristas. Eles acham relevante ver o BBB para exercer cancelamento de todo lado. Suas discussões terminam em ver se alguém usar turbante como “apropriação” cultural. Em geral, são assexuados e o que mais querem é aparecer de modo que os ricos, os políticos, o “público”, lhes dê atenção. Gritam pela virtude da “autenticidade”, ou seja, bradam “eu sou eu mesma” ou “eu sou eu mesmo”. Isso quando já não estão falando “galere” ou qualquer porcaria dessas, de gente que engole o gênero na gramática. A burrice do identitário só é menor que seu gosto por aparecer em festa de bacana ou fazer tipinho no jantar de Natal.
Bolsonaro é burro, mas não tanto quanto o identitário. Por isso ele tripudia em cima da esquerda quando esta, querendo a taça de jumentice, vira identitária. Bolsonaro deu um nó na cabeça do identitário em sua última live. Mostrou lá no Amazonas, para provocar o senador Aziz, que ele estava entre os indígenas vendo-os tomar chá. Era remédio – ele disse. E afirmou: “não tem prescrição médica, não mata, não faz mal”. E eu fiz a mesma coisa, continuou Bolsonaro, ao sugerir e tomar “aquele remédio que eu mostrei para a ema nos jardins do Palácio”.
Várias pessoas sabem que Bolsonaro está confundindo tudo. Mas quando solicitadas a explicar a confusão, se enrolam. Os identitários da esquerda (!) não conseguem explicar a diferença. Afinal, se os indígenas têm uma cultura própria e, como minoria, devem ser respeitados nessa cultura, devem poder tomar o chá de confecção própria. O chá não tem comprovação científica. Muito menos a cloroquina. Então, se ambos não fazem mal, qual o problema? Claro que essa história do “fazer mal”, para a cloroquina, é mentira. Ela faz mal. Mas a questão que Bolsonaro tira da órbita e outra. Ele joga com a ideia da comprovação científica e do chamado “desengano”. Quando não há mais nada que se fazer, temos o direito de tomar gasolina, veneno, ir ao João de Deus e até pagar o Malafaia para nos salvar. E quando há vacina, é possível também apelar para qualquer coisa, como “tratamento precoce”!
Não, não temos o direito de tomar qualquer coisa. Ninguém tem. O direito individual não é assim que funciona no plano da sociedade moderna liberal. Não temos como justificar eticamente nosso compromisso exclusivista com o nosso mal, uma vez que nosso mal pode ser o sofrimento de familiares e o gasto da sociedade com médicos públicos e privados.
Podemos ser ignorantes ao ponto de achar que o chá dos indígenas os faz ficar ali, na tribo, sem antibióticos, seguros. Mas eles ficam sem antibióticos ali não por decisão própria. Eles tomam o chá por razões de cosmovisão, e não por desespero. E se pegam a doença do branco, os rituais com o chá só ficam sem os antibióticos por conta do próprio Bolsonaro, que destruiu todos os organismos de proteção da Amazônia, junto com Salles.
Mas o que Bolsonaro finge não saber é que ele, ao falar do chá e da cloroquina como sendo de igual possibilidade, está assim fazendo como chefe de estado, e não está lidando com a população indígenas. Está lidando com gente que espera uma política pública, mas também gente, é claro, que espera que o presidente não sugira veneno. Ora, no mundo atual a política pública é quase sempre biopolítica. Está diretamente ligada à vida, em diversos sentidos. A ação biopolítica de Bolsonaro é a ação de jogar todos para o cultivo do estilo de vida do homem abrutalhado cujo perfil é o próprio bolsominion.
O bolsominion típico é magoado, recalcado, ressentido. Ele quer ser livre e se dar bem. Ele acha que não se dá bem na vida porque ele não pode exercer a liberdade individual. Ele vê nas regras sociais coisas incompreensíveis. Ele tem a visão de Bolsonaro. Cinto de segurança, cadeira para criança no carro, regras de trânsito, preço da gasolina, fumo em lugares cheios de gente, lockdown para prevenção de doenças contagiosas, máscaras para evitar contaminações, apetrechos de proteção ao trabalho, horários de empresas para que mães possam amamentar, capacete em moto, radares, filiação a partidos com cumprimento de regras etc. Tudo é cerceamento. Para o bolsonarista típico todas essas regras levam a culpa por ele ter se tornado o que se tornou: um fracassado. Hitler só trouxe para perto dele, no partido, pessoas desse tipo. Muitos médicos que nunca conseguiram ser nada vieram a servir Hitler e virarem “gênios” do nazismo. No estilo de Hitler, ele próprio pinto fracassado.
Mesmo o bolsonarista rico se comporta como fracassado – em geral um fracassado não de todo visível: o fracassado sexual – como Hitler! Como Bolsonaro, Olavo, Pondé e outros do tipo – o fracassado de cada um os torna amargos. O rosto deles mostra isso. Por isso, quando Bolsonaro oferece um mundo sem regras civilizatórias, esse fracassado finge acreditar que o presidente ideal é esse homem que garante a barbárie. Bolsonaro não conta, claro, que outras regras virão: o cano do revólver da milícia e o pênis do pastor no estupro real e mental de jovens.
Ora, diante do clamor do fracassado, que pede o fim das regras da civilização, o fim dos poderes republicanos e o esgarçamento da democracia meramente representativa, o passo decisivo é oferecer a solução selvagem e de minorias ou, melhor, de identitários: o chá. O chá evita que tenhamos que ficar sob o que o bolsominion chamaria, se ele próprio não tivesse seus charlatães, de ditadura da receita médica, de ditadura dos laboratórios. Ele acredita ou quer acreditar que há acordo entre grandes capitalistas para fazê-lo pagar mais por um remédio ou vacina. Sim: às vezes o populismo do Bolsonaro finge combater o capitalismo, nos moldes do que estariam sendo feitos por homens sinistros, ricos que seriam comunistas – tudo aquilo que Pondé e Olavo propagandeiam.
Essa arma de Bolsonaro, que é o de se apresentar como paladino da liberdade individual, cala fundo no bolsominion. E o identitário que não consegue explicar nada disso, fica balbuciando feito macaco nessa hora, mesmo que esteja em boa faculdade e não tenha vindo das Uniselvas da vida, como os youtubers mirins que gostam de comentar BBB.
Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo.