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Os brasileiros hifenados. De Rorty a Mark Lilla: o caso Marielle

 

Publicado originalmente dia 24/03/2018

Folha publicou uma entrevista com Mark Lilla (Esquerda deve …). Sua tese é simples e, diga-se de passagem, velha. Ele diz que a esquerda americana deve priorizar reivindicações mais amplas, menos centradas na “política de identidade”. Sua ideia já foi veiculada por outros, tanto no passado quanto recentemente. São os que culpam o Partido Democrata por perder eleições para Trump, por conta de priorizar a “lésbica, negra e gorda” e não mais “os trabalhadores”. Esses críticos não conseguem perceber que Obama ganhou duas eleições, fez duas gestões impecáveis e que os democratas só perderam (mas não no voto popular) para Trump porque Hillary Clinton, de fato, era uma candidata desgastada. Não percebem que Obama nunca centrou sua ação em política identitária de modo cego e unilateral, e recuperou a economia para todos, ou quase todos, mesmo sob forte pressão conservadora.

Sou da velha guarda. Prefiro Richard Rorty e não as novidades carcomidas de Mark Lilla. Não creio que o problema tenha que ser colocado em termos da dualidade “multiculturalismo baseado em identidades fechadas” versus “liberalismo com defesa ampla da classe trabalhadora”. Penso como John Dewey, e, enfim, como Rorty, que se os democratas escorregam em eleições, e que se isso pode ser de responsabilidade de questões de política de identidade, não é pela via desse dualismo que as coisas devem andar. Pois John Dewey, lá no começo do século XX, solucionou a questão, ao menos teoricamente. Ele lembrava que a natureza do americano é ser o americano hifenado. Não existe americano que não seja ítalo-americano, sino-americano, afro-americano e assim por diante. Ser americano é ser, antes de tudo, imigrante. Mas imigrante que aceitou o hífen exatamente para poder viver na democracia antes como modo de vida social que como forma política de governo.

Não é necessário, portanto, que se volte a uma “política de classes”, de cunho social democrata (marxista ou não). Nem é preciso que se ponha contra tal política a ideia de que gays, feministas, negros etc., são os grandes novos “sujeitos da história”. Basta que se permaneça no pragmatismo político de sempre, ou seja, que se faça cumprir o que sempre se fez cumprir, que os direitos para todos se ampliem e que eles garantam a chance de que se criem novos direitos. A América foi feita para isso, já assinalou Richard Rorty: ela é o oposto da democratização do igual, mas é voluntariamente o lugar da democratização da diferença e esta é a sua herança de igualdade. Todos tem o direito igual de serem diferentes, por conta da hifenação do americano. Esse foi o recado de Dewey nos tempos da Primeira Guerra Mundial, contra o nacionalismo xenofóbico, e este foi o recado de Rorty, quando de seu livro de 1998 Achieving our Contry, que Alberto Tosi Rodrigues e eu traduzimos no Brasil para a DPA, editora do Rio, com o título Para realizar a América. 

A política identitária no Brasil tem um problema. Aqui, muito da nossa legislação ainda não garante a flexibilidade própria às diferenças exatamente porque nossas condições econômicas são endurecidas, e propiciam também pouca igualdade de oportunidades. Então, sempre quando falamos, por exemplo, de cotas étnicas, há quem ache que é uma medida econômica, para tirar o negro ou outro da condição econômica inferior. Ou uma medida de política educacional, que visa ampliar a escolaridade de uma minoria. Mas não é. É uma política de ampliação do convívio no sentido de ampliar os esbarrões entre pessoas que não se esbarram ainda, e que só se esbarrando poderão fazer os preconceito diminuir. Política de cotas étnicas é política de ampliação de topografia geográfica-social. Mais gente diferente em mais lugares, se esbarrando mesmo (faxineiros e patrões não se esbarram, mesmo juntos) é o modo do preconceito cair. Nos Estados Unidos também foi assim. É assim. Mas lá, as diferenças econômicas são menores. Então, a política étnica fala como política étnica – a não ser quando algum Trump parece desviar a rota. Aqui, como a questão dos pobres não se equaciona, a política de cotas étnicas perde seu foco e começa a aparecer como um paliativo para a redução da pobreza ou melhoria educacional de alguns. Ora bolas, se assim fosse, seria não só uma medida ineficaz, mas também um escárnio contra as minorias étnicas. Infelizmente, direita e esquerda, quando falam de políticas étnicas, falam erradamente.

O debate falso que se instaurou com o livro de Lilla deve nos deixar atentos, para que ele não reapareça aqui de modo reacionário. Em suma: Marielle foi assassinada por ser defensora dos Direitos Humanos, por encarnar uma tese ampla, humanitária, um legado de uma revolução liberal maior que as dos grupos identitários. Mas Marielle morreu por outra condição, a condição de sempre, a de ser negra, mulher, da favela e lésbica. O tiro saiu para atingir a ordem democrática liberal humanista, mas acertou o peito de alguém da linhagem da política identitária. Todavia, que se lembre: as balas foram de um só tipo e com um só alvo carnal. Ou seja, atingiu a brasileira, a brasileira hifenada: Marielle-brasileira-defensora-dos-Direitos-humanos-negra-lésbica.

Paulo Ghiraldelli Jr. 60, filósofo.