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O que é pós-verdade?

Publicado originalmente dia 02/04/2018

Os manuais de lógica ensinam que a verdade é objetiva – sempre objetiva. Por isso, céticos nunca duvidam da verdade, e sim do conhecimento.

A definição de conhecimento mais comum em filosofia ainda é a de Platão: crença verdadeira bem justificada. Assim, não se pode duvidar da crença verdadeira. Se ela é verdadeira, é verdadeira. A crença verdadeira é enunciável e objetiva. Não faz sentido duvidar do enunciado “O macaco prego não tem rabo” sendo que isto é a afirmação de uma crença e, como tal, verdadeira. Se não fosse uma crença verdadeira, para que anunciá-la? Mas, se digo “Eu sei que o macaco prego não tem rabo”, aí sim entra a questão da dúvida. Posso perguntar, retrucando: como você sabe isso? Qual a boa justificativa para dizer que sabe? Ou seja, você está afirmando que sabe, que tem nas mãos, agora, um conhecimento, então, como o adquiriu? A justificativa para a crença “o macaco prego não tem rabo” é uma justificativa que se sustenta ou posso colocá-la na berlinda facilmente? Será que posso colocar na berlinda a justificativa (por exemplo: “eu vi vários macacos prego”) de modo que nunca você vai conseguir fornecer uma melhor, infalível? Essas são questões do cético. Ele põe na parede a possibilidade das justificativas, não a crença verdadeira. Ou seja, o cético trabalha no campo minado da epistemologia, não da lógica.

Além desse ensino básico de lógica e epistemologia, há também, nesse assunto, as teorias de verdade. Basicamente três: correspondentismo, coerentismo e pragmatismo (em várias versões). Não é o caso de voltar a elas aqui. Já as expus para o leitor principiante (veja: Teorias sobre verdade) em outros lugares.

Dito isso, vamos à questão do título: o que é pós-verdade?

“Post-truth” foi o escolhido como “o termo de 2016” pelos elaboradores do Dicionário de Oxford. Eles fazem isso anualmente. Junto com a escolha, definem a palavra, no caso, um substantivo. É simples: um substantivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Isso quer dizer que pós-verdade não diz respeito propriamente à verdade, mas ao plano da aceitação social e política de determinados enunciados, em geral, o que chamamos de “notícias”, dado que vivemos numa ilha cercada de jornalistas por todos os lados. Assim, pós-verdade não é a mentira ou a eliminação da verdade, mas a situação especial e temporal em que emoções, gostos e desejos bem pessoais contam mais na decisão de passar para frente uma informação que qualquer outra coisa. Diríamos, então, para facilitar: pós-verdade é a época em que as fake news se refestelam.

Mas há quanto tempo estamos vivendo isso?

Gilles Lapouge e outros caracterizaram nossa época, a contemporaneidade, como um período em que a moral moderna, kantiana ou bíblica, baseada na ética do dever (o “dever de consciência”, o “imperativo categórico”, os Mandamentos), e mesmo a moral utilitarista, consequencialista (ver o número de beneficiados para avaliar se um ato é moral ou não), já não possuem mais tanta força diante de uma nova postura moral atual. A nova postura é a do emocionalismo midiático. As pessoas hoje em dia não abriram mão de serem boas pessoas, mas estão mais voltadas para a fofura do bem que propriamente para o bem. Não à toa filhotes de cães ganharam um espaço enorme no mundo visual em que vivemos, o mundo da grande mídia e das redes sociais. Também o espetáculo que faz rir, que mantém a vida leve, faz sucesso: estamos já há mais de trinta anos de êxito das “videocacetadas”. Ninguém mais sabe que a coisa vem de “vídeo cassete”! Nessa “sociedade da leveza” é difícil se mobilizar para cumprir um dever, mas é fácil se emocionar e doar tempo e dinheiro para uma campanha fraternal televisiva, em torno de causas que, até pouco tempo, eram tomadas como frívolas: salvar o planeta, cuidar dos animais, proteger mães que querem amamentar em público, defender anões de atitudes preconceituosas etc, evitar o bullying contra gordinhos etc. Essa nova moral, que funciona pelo emocionalismo, é o esteio que garante o caldo de cultura para que adotemos posturas sem critérios críticos também para divulgar informações. Fake news caminham rápido não por serem mentiras, mas por terem o aval de uma cultura em que tudo é feito junto com a exclamação “oin”, do fofo, do engraçadinho, do bonitinho. A ética da responsabilidade fica por conta de Levinas que, enfim, não está na moda. Fica por conta do Papa que, nisso, está menos na moda ainda. A sociedade da culpa foi embora.

Vivemos uma época de leveza. A “sociedade da leveza” (Sloterdijk) se impõe. Seja fofo ou então morra. Por isso, até mesmo aranhas agora, são fofas. Não podemos mais sofrer tendo repulsa delas. Aliás, não podemos mais sofrer com nada. Escondemos a morte, os doentes, os pobres. Ninguém mais pode ver o Pica Pau diante da professora com a palmatória, mas é possível ver um super -heroi apertando um raio que destrói um planeta inteiro, de modo bonitinho, fofo. O emocionalismo e a sociedade da leveza são parentes.

A pós-verdade é, então, uma desgraça? Não! Não estou dizendo isso. Não sou um professor rabugento que quer viver na “sociedade do trabalho” ou na “sociedade da culpa”. O que digo diz respeito à descrição de nossos tempos. Tudo isso é, em parte, apenas uma consequência direta do que Tocqueville, em 1835, dizia que tenderia a ocorrer nos lugares como os da “democracia americana”. Lugares em que a igualdade se torna um valor e uma prática são lugares em que disposições individuais se sobressaem. Cada homem se acha igual ao outro. Ninguém é melhor que ninguém. Então, cada um se acha no direito de não ter critérios mais universais para avaliar nada, a não ser sua própria cabeça ou, então, seu próprio coração. E eis então que o geral não é de seu alcance, mas lhe é dado pela opinião pública, a opinião de uma “maioria” segundo a mídia que ele frequenta.

Mas calma. Isso pode gerar relativismo, algo já denunciado pelos próprios modernos. Pós-verdade é algo a mais que o relativismo, é a ideia de que a crítica das fontes não tem tanta importância diante da importância da informação, uma vez que a informação em questão toca nossa sensibilidade mais pessoal. O que é emocionalmente fofo, leve, ganha sempre. Mas o que é emocionalmente voltado para o indivíduo, contado como um segredo para ele, transformando-o em alguém especial por poder saber daquele segredo, também tem mais facilidade de ir adiante. Uma notícia racional não é um segredo. Mas uma notícia falando do extraordinário, algo que não se acreditaria pela razão, mas sim pelo emocionalismo individual e individualista, pode ser contada como um segredo, e assim ganha a força que só o fake news possui. E se o fake news anda rápido, então sua época é a época da pós-verdade.

Não é difícil entender isso. Mas é difícil não entrar nesse “mecanismo”.

Paulo Ghiraldelli Jr., 60, filósofo. Autor, entre outros, de Dez lições sobre Sloterdijk (Vozes, 2018)

Foto: “Conheça Lucas, a mais adorável aranha que te ajudará a superar sua aracnofobia”