Publicado originalmente no blog antigo dia 12/02/2017
Ter um coach particular é obrigatório para se sentir parte do mundo empresarial. Acordar com o seu personal trainer chegando é essencial para se sentir na classe média alta. Frequentar eventos de um guru ou palestrante pasteurizado é se sentir uma pessoa culta ou acreditar que está ao menos próxima de gente não ignorante. Há um novo imperativo no mundo: não ousai não ter um consultor!
Fran e eu fomos ver Toni Erdman (Maren Ade, Áustria e Alemanha, 2016) e ao sair do cinema, de volta para casa, lhe perguntei: por que chegamos a esse ponto, do fenômeno de termos que ter consultores para tudo? Fran arriscou uma hipótese que me pareceu bem útil: “eliminamos o outro”. Roubei a ideia: cadê o outro?
Estamos na época do multiculturalismo, dos estudos culturais, dos estudos de gênero, do embate sobre problemas imigratórios e de refugiados e tudo o mais que envolve tolerância e intolerância, palavras obrigatórias na terminologia liberal. Tudo indica que nossa preocupação é com o outro. Mas, se pensarmos bem, não se trata de voltar a ver as coisas a partir da frase célebre da literatura de Sartre, “o inferno são os outros”. Não queremos nada com o inferno. As classes médias do mundo todo não estão a fim de nenhum sacrifício. Inauguramos desde o século XVIII a era antigravitacional: começamos com balões e agora não queremos nenhum peso a mais em nossas vidas. Queremos ser magros. Várias de nossas responsabilidades ou serviços braçais não podem mais estar no horizonte. Toda desoneração é bem vinda e as onerações que são sobrepostas às desonerações, e que podem até piorar a coisa toda, precisam vir sob o envólucro de um novo patamar de peso, uma novidade. Só o novo tem espaço. Dentro do objetivo de nenhum sacrifício, inclui-se aí o fim do inferno sartreano. Portanto, a supressão do outro. O outro é de fato um incômodo na nossa modernidade. Tudo é facilitado num sentido “jovial”. Pais e até avós ficam parecidos com filhos e netos, professores não podem mais corrigir alunos, ninguém tem o outro, e sim advogados! As relações com o outro são feitas a partir das regras de acordos entre advogados, uma vez que a lei se tornou o elemento mediador de nossa vida não só pública, mas privada. Não temos mais o “conselho do outro” e menos ainda a “crítica do outro” uma vez que suprimimos o outro.
Desse modo, tiramos do horizonte o lema iluminista de Kant, o sapere aude! ligado ao “pensar pela própria razão” para “sair da minoridade”, que implicava, claro, ter no canto a razão do outro, e no lugar disso nos embrenhamos na atividade de adoção de algum tipo de consultoria ou assessoria. Não temos mais o aprendizado pela interação com o outro em nossa formação e, assim, montados em uma subjetividade empobrecida, temos que contratar quem pensa e sente por nós – quem faz o papel de montar um aparente diálogo em que nós parecemos estar falando e conversando. Alguém que fale palavras que nos faça ter a sensação de que podemos, talvez, estar vivos. Afinal, Walking Dead é uma série de sucesso, atualmente, porque há momentos que intuímos que só Heidegger, com o texto sobre o tédio, possa nos ter descrito na nossa vida moderna. Tirado o inferno que são outros, não ganhamos novos interlocutores, anjos de ensino mútuo, mas incultos espertalhões que, por sua vez, também têm seus coachs e consultores. Essas múmias desmumificantes nos falam por skype ou nos dão palestras em hotéis, empresas e casas do saber. Aliás, o nome “casa do saber” desde o início virou uma senhora ironia! Dissertam sobre tudo. Ou seja, falam sobre o nada. Falam frases de auto-ajuda que ouvimos porque tais pessoas estão na TV e esta, por sua vez, é sagrada em seu aval. O que ela fala, para muitos que a criticam, é lei.
Um mundo sem o inferno que são os outros é o nosso mundo. Chegamos a isso pela eliminação do outro, mas não apenas num sentido sociológico, mas profundamente filosófico.
Talvez devêssemos levar mais a sério o modo com que Peter Sloterdijk marca o advento da modernidade. No livro Im Welttinnenraum des Kapitals (O mundo interior do capital; publicado em Portugal com o título O Palácio de Cristal) (2005), ele avança a tese de que os jesuítas foram os primeiros modernos, exatamente por atuarem como sujeitos, mas principalmente por serem sujeitos para os demais, funcionando como consultores. Sujeitando-se ao Papa puderam vir a ser os sujeitos de todos, no sentido segundo da palavra sujeito: os que fazem a ação. Arrisquei em meu livro Para ler Peter Sloterdijk (Via Verita, 2017) a continuação dessa tese, lembrando a atividade dos jesuítas como casuístas, os que diziam aos não pensantes o que era ou não pecado, coisa que enfureceu sobremaneira Pascal. Todavia, Sloterdijk tem mais o que dizer sobre modernidade e subjetividade.
No primeiro volume da trilogia das Esferas, o Blasen (agora no Brasil com o título Bolhas, pela Estação Liberdade), ele caminha por uma arqueologia da intimidade que liga questões sobre uma espécie de topologia da psiquê. Para ele, não somos indivíduos, mas sempre “divíduos”, ou seja, uma subjetividade que é una e dupla e que, inicialmente, é assim em sua situação de sinestesia, a da vida do envólucro feto-placenta. Essa é a matriz original e que, portanto, comporta uma estrutura, a bolha, que é por si só o um-e-o-outro e o um-com-o-outro. Uma placenta não é um companheiro individualizado, mas ela própria o perímetro e membrana de uma esfera na qual faz parceira com o feto, ou seja, consigo mesma. Todas as culturas arcaicas, diz Sloterdijk, perceberam isso e notaram a evolução dessa situação sinestésica para uma situação psíquica e social, e acompanharam isso por meio de uma simbologia que garantia ao homem essa transição. A modernidade cortou isso, tratou a placenta como um pedaço de carne, jogou-a fora tirando-a da simbologia da cultura, passou tudo ao comando da higiene médica, ou seja, da nova medicina. A modernidade fez o trabalho de “refutação do espaço interior”. “É moderno quem negar ter estado alguma vez em um espaço interior”. Perdeu-se aí todo o apoio para dar continuidade ao que é a subjetividade não como intersubjetividade, mas subjetividade que já contém o outro, que é um “com”, desde sempre. Essa negação do interior, ou seja, a negação da casa da alteridade, levada adiante pela modernidade, põe na jogada um novo tipo de nascimento, o nascimento moderno. Tudo que preparava o “instinto de relação” (Bubber), assim, quase desaparece. Mingua a ponto do outro ser procurado nas figuras-muletas: do coach ao palestrante inculto e pseudo-professor até chegar no consultor de indivíduos, empresas privadas e empresas estatais. Sloterdijk mostra em dados estatísticos como a consultoria, como subjetividade sobressalente, se impôs na Alemanha. Ora, o filme que vimos, Fran e eu, significativamente é do mundo germânico. Mas pode bem mostrar o que já é do nosso mundo, nos Estados Unidos ou não Brasil.
Não poderíamos ter tirado da cultura, como tiramos, todo o aparato que nos dava a condição de montarmos e remontarmos continuamente nossa subjetividade em forma de, no mínimo, dois-em-um. Mas, em determinado momento, assim fizemos. Antes, a placenta ia embora e dava lugar para as vozes que, junto da voz da mãe e na separação desta, gerava o “amigo imaginário”, o “daimon”, o “anjo da guarda”, na psiquê do indivíduo, e no aparato simbólico social da cidade, da família etc. Agora, no mundo contemporâneo, e já há algum tempo em nossa modernidade, a placenta vai para o lixo e o bebê sai da mãe e vai para o berçário. Tudo é preparado para o surgimento de um indivíduo, mas como uma mônada, que irá se socializar, se quiser, pela linguagem. Esse tipo de modernidade faz, literalmente e metaforicamente, uma castração, aliás, bem representada pelo corte do cordão umbilical. De fato, uma castração.
Desse modo, nós modernos nascemos sem parcerias obrigatórias. Desenvolvemos uma psiquê pouco apropriada. Gerados nessa assepsia que nos coloca em socialização tardiamente (que é o que ocorre em especial na classe média), logo nos vemos num mundo em que o melhor é não ter inferno nenhum que sejam os outros. Não é que não sabemos lidar com o outro. Essa fase de intolerância, que foi de Locke a Sartre, está morta. Vivemos na situação em que a supressão do outro se completou. Não há a noção real de outro, apenas um fantasma, apenas idealização do que pode ser outro. Nessa idealização toda muleta de subjetividade é bem vinda.
O outro é, então, o coach ou o acadêmico-caça-níquel, que faz o mesmo papel da Igreja-caça-níquel, ou seja, um falso eu que se opõe, um falso formador, um pseudo-interlocutor ou um adversário de mentirinha. Palestrante midiagogo, pastor amante do dinheiro ou vendedora Avon ou da Jequitibá fazem a mesma coisa. Os “amigos” da Internet, possíveis de serem “bloqueados”, são o exemplo maior desse tipo de pseudo-outro – para quem não pode realmente lamber seu guru. Esses elementos fingem poder estabelecer a reflexão no interior do indivíduo, servindo de outro, mas não podem. Quem está nesse meio já se transformou em alguém que não tem mais qualquer capacidade de ser sujeito. Tenta refletir, raciocinar, mas o máximo o que consegue é pensar por associação. Lontras, celulares e até militantes políticos conseguem pensar por associação.
Ser sujeito é ter uma teoria para guiar uma prática, é se por em ação com uma justificativa racional. Poucos hoje em dia têm essa condição. A quantidade de gente que precisa de um grilo falante, em nossos tempos atuais, criou o mercado do palestrante de Unicamp e do Bispo Macedo. O mundo contemporâneo de classe média está envolto nessa Internacional da Incultura. A ideia de autonomia não pertence mais ao nosso tempo. O autônomo abriu espaço para o autodidata que, como Mario Quintana dizia, é “o ignorante por conta própria”.
Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo, 12/02/2017
Sandra Huller, Ingrid Bisu – Toni Erdmann (2016):