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O stress da sociedade da leveza contemporânea

Publicado originalmente no blog antigo dia 05/02/2017

Não é porque estamos lutando pelo fim do sacrifício dos animais que o sacrifício nosso acabou. E aí a palavra “sacrifício” tem vários sentidos: do voluntariado de guerra ao trabalho árduo e deste para deveres morais nada fáceis. Essa minha tese, portanto, se insere claramente no debate contemporâneo em contraponto à tese de Gilles Lipovetsky, da vigência de uma sociedade pós-moralista.

Lipovetsky fala em três eras na história moral: vigência da era da moral teológica, vigência da era da moral laica e do direito natural e, por fim, após os anos sessenta, destituição crescente da era do dever, tipicamente kantiana, para a assunção de uma era pós-moralista, em que vale uma moral mais individualista e voltada para a auto-realização, uma postura mais emotiva. Junto disso, dessa individualização da moral e seu, digamos, relaxamento, cresce a ideia da generosidade por meio de campanhas de doação e até mesmo do trabalho da “empresa amiga”, que ajuda pobres, meio ambiente etc. O comércio se dobra ao lucro mais adequado aos tempos, inclusive, claro, como uma forma de que o lucro não caia. Isso tudo, acrescenta Lipovetsky, não quer dizer que uma Madre Teresa não seja homenageada. O sacrifício desinteressado ainda continua como modelo, todavia, modelo público, não qualquer coisa que os pais indiquem para os filhos tomarem como ideal de vida a ser escolhido por eles. Nesse contexto, Lipovetsky não tem palavras para descrever essas amenizações do liberalismo de nossa época senão usando a palavra “paradoxal”. No passado, talvez, outros poderiam usar a palavra “dialética”.

Assim, a sociologia porta-se de maneira avaliativa sim, para não ser vista como positivista. Mas avalia de modo envergonhado, usando a palavra “paradoxal”, para tentar não se enquadrar no partidarismo conservador – que pode vir da direita e da esquerda – que condenaria a liberalidade e o individualismo contemporâneo. Prefiro uma abordagem antes filosófica que desse tipo de sociologia francesa, ainda que as descrições de Lypovetsky sejam minuciosas e atentas. Nesse caso, a “teoria do mimo” articulada às “verticalizações” das “antropotécnicas” de Peter Sloterdijk me causam maior conforto.

Vamos aceitar a tese de que o mundo liberal ocidental, construído após as revoluções dos Sixties, tem uma massa de adeptos que não pode ser desprezada. Qualquer afronta a esse mundo vira briga. A ideia do americano hifenado (o americano como ítalo-americano, sino-americano, afro-americano etc.), louvado por Joyn Dewey no início do século XX, se espalhou como a ideia básica do cidadão-do-mundo, ou seja, de que antes de tudo há o indivíduo e suas crenças privadas.  Uma afronta a essa ideia, que é central no liberalismo contemporâneo e se associa ao modo de vida das democracias ocidentais, é rechaçada no mundo todo. Trump está contra ela e um volume assustador de gente no mundo todo está reclamando dele. Pela primeira vez nos nossos tempos pós-Guerra da Coréia, não se critica a América por “imperialismo”, mas sim Trump por ele não deixar a parte boa do imperalismo vingar. Qual a parte boa? Chamo-a de socialização da liberalidade americana individualista. As pessoas querem ser abelhas mendevilianas.  Há aí o que Alain Renault tem lembrado como a era em que há sentido em falar de ‘vicios privados, virtudes públicas’.

Como as abelhinhas de Mendeville, queremos poder fazer o que quisermos e, ao mesmo tempo, sabermos que alguma mão invisível ou algumas leis bem visíveis mantenham a sociedade funcionando. Funcionar, nesse caso, significa: todas as instituições serão virtuosas, o caos e a orgia não se instaurará, e a sociedade de moral individualista, em rompimento com a tradicional sociedade do dever, de modo algum será uma sociedade sem moral ou um reinado de anomia. Em termos políticos: que algum tipo de regramento social-democrata, um tipo de civilidade liberal, tudo isso na sociedade de mercado, possa nos dar uma vida menos pesada. Aqui, a questão toda é o peso. Pedimos menos peso e… conseguimos!

O que Peter Sloterdijk diz é que temos de compreender os nossos tempos não como fases de moral, mas como um um cume de um movimento anti-gravitacional. Soltamos balões, colocamos aviões e satélites no céu, desfizemos nossas viagens obrigatórios por meio do correio e agora pela Internet, fazemos atualmente um intercâmbio jamais visto de bactérias sem grande medo sobre isso, dado nossa globalização farmacêutica, criamos para toda a classe média a indistinção entre trabalho e ludicidade, geramos um corpo mais leve no ideal e mais pesado no real, libertamos a mulher da natureza e das famílias, adquiriemos o direito de destruir a Terra de uma só vez e ainda não fizemos isso, ou seja, sofisticamos todos nossos mimos. Na busca do cerne do trabalho das antropotécnicas, que é o de superação contínua em direção ao vertical, tornamos a vida sempre mais pesada e onerada no interior de um movimento contínuo e forte de desoneração.

Em outras palavras: só num mundo do não-dever como o nosso, de códigos morais individualizados e de quase irresponsabilidade, seríamos capazes de gerar a palavra stress. Não à toa é uma palavra americana. Só há gente estressada se isso é concebido por conta da sociedade ter se tornado prazerosamente leve. A desoneração veio para ficar. Com ela, as onerações que num primeiro momento podem parecer frívolas, mas que se tornam realmente onerações. Nessa sociedade há então espaço para um bocado de ongs cuidando de focas disputando espaço com um outro bom número de ongs cuidando de aborto e mais uma porção enorme de associações querendo salvar pobres de uma determinada região do planeta, mas não de outra. A generosidade por pessoas, grupos, animais, instituições, prédios e até tecnologia é também grupelhizada e individualizada. Aliás, como também acontece com a religião.  Não há volta. Isso estressa a todos, quando todos estão em situação já tão alta, fora do círculo de antigas onerações, que podem até sentir falta de ar. Também a ida ao psicanalista pertence a pedado da frivolidade que vem da desoneração geral. Torno-me um peso, já que não tenho peso algum.

Quando olhamos para  o mundo nesses termos, que implica em se livrar do palavreado um pouco simples demais de Lipovetsky (mas longe de mim de acusá-lo ser uma fala-nada do tipo Bauman) e também deixar de lado a Internacional Miserabilista (que prega a tese de que nosso destino está traçado pela falta, pela pobreza, e então temos sempre de nos agredir uns aos outros ou criar leis que agridam todos de uma vez), tudo faz mais sentido. Nesse caso, estamos usando olhar de Sloterdijk.

Nesse campo, o que nos espera é a compreensão de como funciona a ‘insuportável leveza do ser’. Compreender nossos tempos e saber olhar para que stress irá surgir de nossa falta de stress e dentro dessa falta: o que virá de nossa liberdade, de nossa leveza, de nossa multiplicidade de opções, de nossa capacidade de aderir à ludicidade da vida de joguinhos no celular que, enfim, se mistura com a prática de nosso trabalho e, inclusive, da prática da guerra? Tudo é feito para que se sinta dor quando tudo pode ser anestesiado. Tudo é feito para que não se possa sentir tédio, sem que com isso tenhamos de fazer o que os nazistas fizeram. Eles, como escreveu Adorno certa vez, se vangloriavam ao dizer: “quando tudo isso [a guerra] acabar, poderão falar tudo de ruim de nós, menos que fomos entediantes”.

Paulo Ghiraldelli Jr., 59. São Paulo, 05/02/2017