Publicado originalmente no blog antigo dia 01/09/2018
Para a querida Carla Carmona cuja palestra na ECA-USP inspirou este texto
Branco na favela vira preto. “Lugar de mulher é na cozinha”. Essas duas frases, uma minha e outra do âmbito da conversa popular, dizem respeito a algo que todos nós enxergamos, mas que teimamos em não dar atenção. Trata-se do seguinte segredo de Polichinelo: nossa epistemologia tem sua fonte na terra, no espaço, na geografia, e não só na lógica e na história.
O que quero dizer é que se Miranda Fricker quer realmente falar em injustiça epistêmica, ela terá de ceder a Sloterdijk e a Wittgenstein. Caso contrário, seu aparato torna-se racionalista demais e, em certo sentido, formal. Não basta trazer a concepção de injustiça da ética para a epistemologia. É preciso mais. É necessário ter em mente que nossos jogos de linguagem (Wittgenstein) são frutos do espaço, do topos (Sloterdijk), e que é neles que se estabelece a injustiça. A injustiça não é um fenômeno linguístico puro, digamos assim. Mesmo se adjetivarmos a injustiça de “epistêmica”, ela não perde seu corpo sujo pela terra.
Fricker fala de injustiça do testemunho e da injustiça hermenêutica. A primeira se refere ao quanto sabemos por meio de testemunhos, e o quanto os testemunhos são falhos ou bloqueados por conta de preconceitos variados. O resultado é um saber deteriorado. A segunda se refere à falta de instrumentos hermenêuticos para nomear problemas, situações de injustiça, e que tornam então a injustiça mais perpétua ainda. Mas, a meu ver, o problema da injustiça epistêmica não é um problema de epistemologia exclusivamente, mas um problema de geografia. Trata-se de ver o quanto nossa antropologia pode nos mostrar que nossa epistemologia é projeção de nossa vivência linguística em espaços. Os jogos de linguagem que fazem com que o testemunho seja um testemunho e que instrumentos ditos hermenêuticos sejam instrumentos hermenêuticos se criam, se alimentam e se delimitam a partir do espaço. Espaço aqui é terra, geografia, mas é também, esferas, ou seja, espaços surreais de Sloterdijk (como a Khora platônica – ensinada de maneira fantástica por Derrida(1)).
Os exemplos podem esclarecer. Um policial traz para a delegacia um branco de uma favela. Ele vai informar um crime que viu. O delegado olha para o branco e pergunta a moradia dele. Ele fala que mora na favela X. O delegado manda o escrivão tomar o testemunho do indivíduo, mas ele próprio, delegado, não presta atenção na fala do rapaz, não a leva sério, quase que inconscientemente a desconsidera. Temos aí uma situação de injustiça epistemológica: o conhecimento que o delegado vai ter do fato relatado é menor que seria, e isso advém do fato dele considerar o falante alguém que não vale a pena ouvir. Por quê? Por ser negro? Não, o rapaz é branco. Mas vira negro, ou seja, vem da favela, onde “bandido protege bandido”, e então não tem que ser levado a sério. Nesse caso, é o topos que dá o status ou tira status do depoente. O saber está vinculado ao espaço, não propriamente à terra da favela, mas ao conceito de favela, ou pré-conceito (ou tudo que está no imaginário social sobre favela), que o delegado mantém. Ou damos atenção ao espaço ou não entendemos o que Miranda Fricker quer dizer.
O segundo exemplo. Uma mulher ouve de seu marido que “lugar de mulher é na cozinha”. Ela sente um desconforto com isso. Mas ela não tem nenhum texto na cabeça para dizer o que sente. Não tem instrumentos para elaborar uma resposta que diga: “não, isso é opressão, isso é me tirar o direito de ser gente”. Ela não tem um instrumento hermenêutico, ou seja, uma palavra que é a palavra “mulher”. A palavra mulher, para ela, não existe. Existe só “mulher é mulher se estiver na cozinha”. Fora da fixação do espaço, fora do topos chamado cozinha, um 3×3 com fogão, ela não existe, não existe nenhuma mulher. Mulher em cargo de chefia de uma empresa? Ora, isso não é “mulher de verdade, é como homem”. Aliás, “se vestem como homem, não?” Tudo aí indica que a esposa, no diálogo, não possui em seus jogos de linguagem um instrumento hermenêutico simples, o de saber o que significa a palavra “mulher”, e que esse instrumento lhe foi tirado por conta dela ser “rainha do lar”. Desse modo, ela se conforma e muda o discurso, respondendo ao marido com pseudo-autoridade: “não entre na cozinha que você só atrapalha”. Ela confirma, mas agora positivamente, para se iludir, que “lugar de mulher é na cozinha”.
Tanto a questão do testemunho quanto a questão da falta do instrumento hermenêutico são, portanto, questões de injustiça epistemológica, mas que são ininteligíveis sem os conceitos de jogos da linguagem wittgensteiniano e de espaço sloterdijkiano.
Paulo Ghiraldelli Jr., 61, filósofo.
(1) Sobre a noção de espaço em Sloterdijk, sobre khora, ver: Ghiraldelli Jr., P. Para ler Sloterdijk. Rio de Janeiro: Via Vérita, 2017.