A Amazon tem em seu catálogo livros negacionistas. As pessoas que se insurgem contra tal literatura, mas que ao mesmo tempo temem qualquer tipo de censura, advogam que a grande plataforma deveria ao menos não sugerir tais obras. Alguns dizem que deveria fazer mais, por exemplo, a Amazon deveria avisar o leitor a respeito da não cientificidade da obra.
A resposta da Amazon é a de que ela não é uma editora. Não tem conselho editorial. Seu Clube de Autores serve como um lugar para autopublicação. Em tempos como os nossos, do revival da direita de estilo Trump-Bolsonaro, que busca casar interesses do capitalismo financeiro com poderes bairristas, qualquer um que publique na onda negacionista pode vender bem, e fornecer para a Amazon um bom lucro. O negacionismo é o núcleo comum das diversas tendências que se dizem antiglobalizantes na direita atual.
No contexto da sindemia da covid, não são poucos os que imaginam que o negacionismo que, junto do movimento anticiência-consensual-acadêmica, faz a propaganda de teorias conspiratórias, é o grande responsável pela morte de muita gente. A preocupação com a Amazon é legítima, pois a venda proporcionada pela plataforma não é pequena, e a rapidez com que uma crença se dissemina, hoje em dia, pode realmente alterar o panorama de quadros sociais que antes da Internet levariam dezenas de anos para se fazer notar.
Todavia, dado que a maioria hoje em dia não pode mais sonhar fora do capitalismo, tudo o que se pensa para além dos poderes dos algoritmos do Google, Facebook, Microsoft e Amazon fica restrito aos muros de um mundo fantasiado. Criamos o hábito de sonhar pequeno, de sermos “realistas”, e não temos coragem de dizer que os algoritmos são um produto do capitalismo e, em especial e mais profundamente, do capitalismo financeirizado de nossos dias. Podemos até dizer isso, contanto que antes, para não parecermos ingênuos ou militantes comunistas ridículos, tenhamos avisado, com Luciano Huck, que o capitalismo é o melhor regime de vida, pois, de todos os regimes, é o que trouxe o maior numero de pessoas para longe da pobreza. O nosso mundo está complicado: para parecermos inteligentes temos de nos igualar ao burro! Então, se avisamos que vamos fazer tudo dentro do único mundo possível, o do capitalismo, temos que encontrar um modo de “civilizar” a Amazon e as outras três gigantes. Nessa hora, ficamos olhando com caras de bobo uns para os outros.
O algoritmo não iria ser o rei da cocada preta atual se não tivéssemos saído do fordismo para o pós-fordismo que se associa ao capitalismo financeirizado. O modo de atuação nossa, ao falarmos a linguagem das finanças, da Bolsa, é o de quem fala a linguagem dos algoritmos. A linguagem binária em que a semiótica subalterniza e domina a semântica se torna a linguagem de todos nós. Fundimo-nos às máquinas. Essa linguagem facilita a ciência, de um lado, isso para os experts, mas para o senso comum de educação mediana ela reduz sobremaneira o pensamento. Pensar sem abstrações, sem conceitos e somente por símbolos é o que as crianças fazem. Sentir por meio de emoticons é adotar autocastração.
Assim, o negacionismo tem seu campo fértil naqueles que não são contra a ciência, mas são contra a ciência que eles não entendem, que demanda o pensamento sofisticado. O negacionista é a favor da autoridade da universidade, contanto que esta, através de dissidentes explícitos ou não, lhe dê teorias que o faça parecer tão inteligente quanto os que receberam educação tradicional, ou que estiveram sempre na trilha do Iluminismo. Negacionistas do mundo todo buscam dizer que não são negacionistas da ciência. São, pelo contrário, segundo eles, os verdadeiros respeitadores do método científico, uma vez que colocam em dúvida a última palavra da ciência e aderem às hipóteses que ainda estão em aberto. Os cloroquiners até hoje possuem esse discurso, copiado dos antivac e dos que dão combate ao “alarmismo climático”. Bonecas céticas e niilistas se agrupam a esta gente.
Por isso mesmo eu sempre trabalhei com narrativas e não com a ideia de Verdade. Na acepção de Richard Rorty e Robert Brandom, a filosofia é, para mim, a arte de dar e pedir razões. Talvez eu não possa refutar em definitivo uma tese negacionista, mas certamente terei uma decisão na mão quando as razões me forem apresentadas. Avalio razões dando minhas razões. Para uns isso pode terminar num jogo relativista que cairia bem no parlamento, não na universidade. Da minha parte, penso que não. Penso que universidade e parlamento diferem quanto a ênfases, mas não por essência. Penso que na hora que as razões podem ser exibidas, mesmo que a verdade como correspondência não puder se obtida, ficaremos inclinados a decidir e efetivamente decidiremos. Acho essa forma de agir melhor que aquela dos positivistas que, enfim, vieram aos quatro cantos falar que temos que seguir “evidências científicas”. Ora, evidências-científicas versus narrativas-construídas-pelo-que-chamamos-de-pseudociência não é um modo bom de colocar a discussão.
Creio que a filosofia como arte de dar e pedir razões tem boas chances contra o negacionismo. Foi o que ocorreu entre nós recentemente: pedimos razões para a turma do Pondé-Olavo-Bolsonaro, e o que essa turminha nos forneceu em termos de razões se revelou pouco útil para nós. Pedimos razões em educação e eles nos deram três ministros desastrosos e a paralisia do MEC. Pedimos razões em relações internacionais e eles nos deram um ministro que deixou o mundo todo contra nós. Pedimos razões para seguir a teoria da “imunidade de rebanho” e eles nos deram mais de 400 mil mortos. Ora, não foi difícil então escolher! Caso não pedíssemos razões e sim a Verdade, teríamos sido derrotados. Em termos de Verdade eles sempre diriam que não pudemos desmenti-los, mas em termos de razões, as desses negacionistas levam a objetivos que não queríamos e não queremos alcançar. Então, temos como argumentar pela nossa escolha, pelo nosso rechaço ao negacionismo.
Em termos políticos, só com uma educação mais plural e para todos, como preconizou o Iluminismo, vamos ter como sempre apostar no jogo de dar e pedir razões. Portanto, junto com essa postura epistemológica minha há de vir uma postura de favorecimento democrático que implica em socialização do conhecimento, de democratização da escola pública para que todos possam saber que razões lhe são melhores efetivamente. Pois, afinal, as razões dos negacionistas, uma vez que matam negacionistas, podem ser mostradas a vários deles (mas não todos) com não sendo interessantes.
Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo.