Publicado originalmente no antigo blog dia 07/03/2015
Há uma diferença enorme entre adotar o amor fati e endossar a resignação. Todavia, essa enormidade só fica grande mesmo para alguns. Uma boa parte das pessoas desconfia que se alguém “ama os fatos” não tem como não ser um completo resignado. Sendo assim, não haveria outra saída na filosofia de Nietzsche senão uma certa adoção da postura trágica e, junto disso, alguma condescendência para com o status quo, um tipo de conservadorismo.
Terá então Nietzsche enganado vários scholars esses anos todos, não passando de um filósofo desses que fingem ficar de pijama, com ar blasé para tudo, mas que na verdade atua como militante da causa da não mudança?
Amar os acontecimentos, ou seja, o que chamamos de “fatos”, é mais que aceita-los, é estar disposto a gostar das ocorrências, de se sentir preenchidos por elas. No entanto, resignar-se não é amar, é aceitar e, claro, engolir a contragosto um bocado de coisas. Na filosofia de Nietzsche essa diferença se faz presente em vários elementos, mas especialmente na maneira como ele apresenta sua doutrina do “eterno retorno”.
O “eterno retorno” é uma tese cosmológica. Mas não só, também pode ser lido como um imperativo ético.
Como tese cosmológica o eterno retorno diz que tudo que ocorre volta a ocorrer. Mas isso não de modo do decalque, é claro, mas segundo o que são os elementos cosmológicos envolvidos. No caso de Nietzsche, o mundo é a manifestação de forças cósmicas, e essa manifestação se realiza por disposições que se repetem, ainda que seus personagens sejam outros. Por isso ele fala que a tese da conservação da energia exige a adoção do eterno retorno (Fragmentos póstumos 1869-1889, 5 [54]). Há transformação, mas em um sistema, se a energia não se perde de modo algum, então em termos filosófico-cosmológicos há a mesma disposição das forças, digamos assim. Aí está o aspecto trágico, se é que existe algum, da filosofia de Nietzsche. Em termos das forças compositoras do mundo, o destino se faz repetindo o que se fez, e por isso, nesse sentido específico, não se pode fugir dele. Entender isso nos faz amar os fatos, e nesse ínterim encaminhamo-nos para a ética.
Como imperativo ético o “eterno retorno” funciona, nos moldes de uma paráfrase do imperativo kantiano, segundo os dizeres: viva como quem é capaz de afirmar a cada e toda ocorrência, que quer isso mais uma vez, e mais e mais uma vez (A gaia ciência, § 341). Nesse caso, o filósofo vê tal ordem como a de um demônio que, vindo à noite tirar o sono, nos joga uma tal maldição. Todavia, não poderia encontrar tal demônio um homem que tivesse vivido um momento de modo tão descomunal que, então, ouvindo o diabo, o elogiaria como um deus? E afinal, um imperativo desse tipo seria menos rigoroso que o de Kant? Não exigiria uma coragem sobre-humana que colocaria os humanos sob tal imperativa algo melhor?
É necessário decidir entre a tese cosmológica e a tese ética? Para alguns talvez, não para mim. Sigo a risca a ideia da Nietzsche que a filosofia é algo experimental. Prefiro experimentar pensar na dupla possibilidade de conviver com as duas formulações, retirando delas toda uma seiva. Afinal, há outra saída que não seja sermos contemporaneamente pragmatistas a ponto de viver de experiências?
Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo
Imagem de Michael Maier (1569 – 1622)