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O “nós” e as cenouras

 

Orignalmente publicado no antigo blog dia 06/03/2015

Nós vegetarianos somos tontos e hipócritas? Não creio!

Quando digo que precisamos preserva a vida, estou falando no sentido do Papa Francisco, ou seja, do combate à “cultura do descarte”, não estou dizendo que vou colocar no altar cada mosquito da dengue.

Gostamos de cachorros e, nos últimos anos, ao menos no Ocidente, temos trazido esses nossos amigos (que talvez tenham nos criado, num passado remoto) para o interior não só do lar, mas da família. Nosso amor pelos animais deriva da nossa ampliação do amor que já temos desenvolvido, ao ver elementos da natureza como parecidos conosco. Nosso amor não é uma diminuição de nosso narcisismo, mas uma ampliação de suas fronteiras, um crescimento do “nós”. Sempre agimos assim – é uma regra da história humana. E não há outra forma de exercer o amor em nossa história. Criamos identidades no transcurso dos conflitos sociais e no âmbito das guerras semânticas.

Lidamos com justiça e lealdade. A justiça para todos, a lealdade para o nós. Mas o filósofo americano Richard Rorty nos ensinou a ver a justiça como uma ampliação da lealdade. O nós se amplia e, então, ser justo é uma forma de cumprir com a lealdade com esse grupo crescido, não mais o clã, mas a cidade, não mais a cidade, mas a humanidade etc.

Talvez um dia incorporemos ao “nós” os robôs e as baratas, como fizemos com crianças, mulheres, estrangeiros, escravos, gays, aleijados, feios, fetos, loucos etc. Só quem não tem dimensão histórica e não entende esse processo tenta nos chamar de hipócritas ou diminuir a força da fala do Papa sobre a “cultura do descarte”, e de não entende-la.

Pode chegar o dia que nos alimentaremos por meio de vitaminas coloridas, caso o “nós” incorpore as cenouras e outros seus parentes. Os que odeiam utopias ficam espumando na boca quando anunciamos essa possibilidade de ampliação do amor. Não nos suportam. A direita nos odeia por causa disso. Às vezes a esquerda faz o mesmo.

Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.