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Muito além do cuzcuz. Leitura critica do livro de Ciro Gomes

 

O livro do Ciro é uma incógnita. Projeto nacional: o dever da esperança (Editora Leya, 2020) é para quem? Se é para intelectuais, é curto demais, insuficiente; se é para o leitor comum, então Ciro deveria ter deixado de vez a parte histórica e se concentrado no que se pode fazer e como se pode tentar fazer o Brasil sair do atoleiro.

Tento sair desse dilema, e para ser justo, devo me basear única e exclusivamente no que está escrito.  Não devo pressupor qualquer coisa, até porque nunca estive com Ciro Gomes e só sei o que ele pensa a partir de suas campanhas políticas.  

Pegando o livro nas mãos, e tendo recentemente visto Ciro junto com outros políticos em uma conversa organizada por estudantes brasileiros nos Estados Unidos e transmitida pela Internet, salta-me diante dos olhos dois trechos.

Primeiro:

“O grande erro dos militares na época, e esse mesmo erro hoje se repete como tragédia, foi acreditar que se estivéssemos alinhados aos EUA estes deixariam o Brasil se desenvolver. Mas a questão em geopolítica não é alinhamento ideológico, é projeção e proteção do interesse nacional. Quando o Brasil começou a ameaçar “virar uma China” no “quintal” norte-americano, eles dispararam o gatilho dos juros da dívida e transformaram as finanças globais em armas de guerra contra a industrialização da América Latina.” (grifo meu)

Após algumas palavras, o segundo trecho:

“Todos os países que dependiam de fluxos internacionais de capitais de longo prazo e baratos como mecanismo central de seu desenvolvimento tombaram. E o Brasil tombou escandalosamente. Durante quarenta anos os empréstimos que o Brasil contraía no exterior tinham, em média, cerca de quinze anos de prazo, três de carência e chegavam a cobrar juros anuais de apenas 2,5%. E então, a partir dos últimos anos da década de 1970, não conseguíamos financiar nossa dívida nem nosso desenvolvimento.” (grifo meu)

No primeiro destaque Ciro põe os juros da dívida não como acontecimento, mas como ato intencional americano para subordinar e destroçar a América Latina. No segundo destaque, Ciro se vê na obrigação de dizer coisas que poderiam bem ser usadas para anular o primeiro destaque. Pois se os Estados Unidos atingiram “todos os países que dependiam de fluxos internacionais de capitais de longo prazo”, é um pouco difícil continuar mantendo a ideia do destaque primeiro, que faz dos Estados Unidos um país cuja política econômica está exclusivamente em função de destruir a América Latina.

Ciro deveria ter reparado nessa contradição. Afinal, pegar contradição não é a especialidade do advogado? Ciro é professor de Direito, não é?

Todavia, o nacionalismo do Ciro funciona como ideologia, ou seja, falsa consciência. Ele precisa encontrar vilões que não nos deixam ser o que precisamos ser. Todo nacionalismo acaba por encontrar estrangeiros vilões. Nessa hora, nossa terra perde a pujança que lhe dávamos e vira vítima, e assim nos desresponsabilizamos de nossos erros. Os malvadões americanos nem precisavam mexer nos juros, mas mexeram só para nos ver rebolar na chapa quente. Ou talvez os americanos tenham feito isso apenas para que o Jessé de Souza escrevesse textos onde tudo é feito por vilões e heróis.

A partir daí, Ciro centra fogo na questão dos juros e da dívida, e toda a história se resume a esses argumentos que, de certo modo, é o modo que os monetaristas criam narrativas. Ciro não é um monetarista, mas seu economicismo o torna alguém que fala a língua histórica dos monetaristas. O Brasil se resolve por meio de medidas econômicas que, no fundo, seriam medidas monetárias ou próximas.

Essa é uma falha do livro como um todo. Mas, centrando o foco apenas nesses destaques, o fato é que Ciro não volta a eles para sofisticá-los e enriquecê-los, e desse modo eles acabam soando como insuficientes e até mesmo um erro. E isso acaba por dar o roteiro ao livro todo. É difícil de aceitar que o Brasil é aquilo que Ciro descreve por conta desse problema da dívida e dos juros. Esse fato criou crises em vários lugares do mundo. Muitos países fizeram empréstimos a juros baixos, e se arrebentaram depois quando os juros subiram. O Brasil foi um deles, e nunca foi uma potência ameaçante aos Estados Unidos.

O Brasil nunca foi “uma China” – um país que despertaria a curto prazo para um futuro de rivalidade com a economia americana. Pensar isso é dar asas a ufanismo tolo. O nosso crescimento foi grande sob o nacional-desenvolvimentismo de Vargas, mas nossas ambições e velocidades não se comparam ao que a China fez e vem fazendo.

O que Ciro diz não é de todo errado, mas o problema são as omissões. Eles são muitas. Ciro parece ter faltado na aula de filosofia social a respeito da modernidade. Ele parece alheio à cultura de esquerda que, enfim, tem se preocupado com as mudanças do capitalismo.

Fico me perguntando se Ciro conhece os escritos do pós-operaísmo, como Toni Negri & Michael Hardt, Maurízio Lazzarato, Carlo Vercelone e Christian Marazzi, para ficar nos mais citados. Ou se, não tendo lido os italianos, leu o que foi feito no francês, como os livros de André Gorz e de Yan Moulier Boutang. Mas se nada disso lhe é familiar, será que não caiu em suas mãos nenhum dos novos livros de Ladislaw Dowbor? Todos esses autores falaram do capitalismo cognitivo, um bom nome para o capitalismo em que vivemos. Mas como ele gosta de economia, talvez ele tenha ao menos lido os que os que se preocuparam exclusivamente com a financeirização, uma marca de nossa época. Mas no livro dele não há menção a Suzanne de Brunhoff ou François Chesnay.

Esses autores são os pioneiros a respeito de uma compreensão mais geral do capitalismo no qual vivemos, e que se iniciou principalmente a partir dos anos oitenta. Segundo o meu entendimento, que é o de quem viveu todo esse período e se tornou trabalhador exatamente nessa época, esses autores fornecem bons elementos para expor um quadro geral das nossas agruras.

Minha narrativa implica no imbricamento de quatro tópicos: neoliberalismo, pós-fordismo, financeirização e biopolítica.  O quadro abaixo expõe o que ocorre sob cada uma dessas condições.

Financeirização Sai a produção e entra o crédito
Pós-fordismo Sai o homem e entra a máquina
Biopolítica Sai o trabalho fabril e o homem se desloca para a sociedade para trabalhar em rede gerando o General Intelect
Neoliberalismo Sai o Estado e entra o mercado

A história suscinta pode ser contada no que segue.

Os Estados Unidos reconstruíram a Europa e o Japão do pós-Guerra. Na reconstrução, os americanos puseram todo o seu país para produzir. Por volta do início dos anos sessenta, essa tarefa havia acabado. Os europeus e os japoneses emergiram como competidores. Em pouco tempo a balança comercial se inverteu: saiam dólares para a Europa e para o Japão no aumento do consumo americano. Ao mesmo tempo, os gastos do Estado americano com benfeitorias para a população e na Guerra do Vietnã obrigaram esse país a emitir mais dólares. Os anos sessenta viram a economia americana apresentar uma defasagem entre o ouro guardado em Fort Knox, que dava lastro ao dólar, e o volume de dólar na praça. A sensação do mundo todo em relação ao conteúdo de Fort Knox não era boa! Em 1971 o presidente Nixon fez uma aparição na TV especificamente para tratar do assunto. Invocando narrativas com sabor de teoria conspiratória, rompeu com o sistema criado pelo Acordo de Breton Woods, que havia tornado o dólar moeda universal, referente ao ouro guardado nos Estados Unidos. Foi uma decisão unilateral. O mundo todo foi pego de surpresa.

Essa é a história. Nixon não dava a mínima para o Brasil. Muito menos suas ações foram no sentido de punir a América Latina, como Ciro Gomes escreveu. Nixon fez o que fez para resolver um problema da economia americana.

Com o ato de Nixon os países tiveram de adotar o sistema de câmbio flutuante. Cada país, segundo sua economia, tinha de se acertar com o dólar. Isso fez o chamado mercado financeiro dar passos largos para se estabelecer como um campo de negócios prioritários no capitalismo. Ele já estava pujante, uma vez que havia dólares guardados na Europa, os eurodólares, dinheiro que havia sobrado do tempo do investimento dos Estados Unidos naquele continente para reconstruí-lo. Depois, vieram os petrodólares, dinheiro do aumento dos preços de petróleo por decisão da OPEP, nos anos setenta. Mas então esse mercado ganhou mais um componente no sentido de encorpá-lo. Nasceram os derivativos, ou seja, contratos derivados de outros contratos. Iniciou-se a prática de estabelecer o contrato de compra e venda e já em seguida o estabelecimento de um contrato derivado com o objetivo de se proteger de oscilações do dólar.  Um contrato derivativo nada é senão algo que visa controlar o futuro, ele fixa o dólar num valor especulado, para que comprador e vendedor possam não perder muito unilateralmente em data futura, quando da entrega da mercadoria e do pagamento. Além disso, optou-se pela securitização dessas dívidas, ou seja, a possibilidade de comprar e vender esses derivativos. Aos poucos, os derivativos viraram papeis negociáveis, sem que os negociadores soubessem de onde vinham e a que ativos se referiam ao fim de uma cadeia. O mercado financeiro se tornou não só um lugar de comprar e vender ações de grandes companhias, mas de comprar e vender títulos e dívidas. E de especulações de todo tipo a respeito desses papeis.

Na medida em que o mercado financeiro foi se complexificando, no lado da produção a própria fábrica também foi se alterando. Entrou a máquina que dispensou o homem. (Pós-fordismo, fim do regime do taylorismo e sua linha de produção). Este, por sua vez, passou a trabalhar na cidade, em tempo integral e em rede. O homem deixou de ser atingido pela política na hora do trabalho, mas sendo toda hora a hora do trabalho, o homem foi inteiramente abocanhado pelos destinos do capital. (Biopolítica). Sim, desde algum tempo todos nós trabalhamos em rede, mas sozinhos do ponto de vista de articulação a algum tipo de proteção social – ficamos sem sindicato, que enfraqueceram numericamente e, onde não enfraqueceram espontaneamente, foram quebrados por políticos de direita – Margareth Thatcher e Ronald Reagan à frente. (Neoliberalismo).

Uma vez trabalhando na sociedade, fazendo-se “empresário de si mesmo” ou, trabalhando ainda para empresas, fazendo-se “capital humano”, o trabalhador passou a dispor toda a sua vida no trabalho. A mais-valia da fábrica deixou de ser interessante diante da mais-valia social, aquela que se pode tirar do trabalhador que presta serviços e que está sempre conectado. Ele é parte da produção do que Marx chamou de General Intelect, um saber difuso que é aproveitado pelos ricos, pelo capital, à medida que é privatizado. Os capitalistas o privatizam para gerar a escassez de produtos – em geral imateriais – gerados pelo saber em rede. Assim, os capitalistas devolvem esse saber em forma de tecnologia (o caso da vacina é típico) para todos nós que, então, o consumimos e que, enfim, demos a base para a sua produção. Todos são então trabalhadores e, enquanto trabalham e estão conectados, consomem também. No ato de consumo, mesmo imaginando estar se divertindo, estamos todos aperfeiçoando aqueles que nos oferecem entretenimento em rede. Somos então prosumidores – produtores e consumidores ao mesmo tempo. (Biopolítica).

Uma vez em sociedade e não mais na fábrica, o nosso salário, nesses últimos quarenta ou cinquenta anos, foi deixando de ser regido por negociação coletiva. As perdas salariais nesses últimos quarenta anos foram enormes – e isso no mundo todo. Todos nós, hoje, no mundo todo, ganhamos menos. A sociedade deixou de ser a “sociedade do consumo” – cantada e contada pela sociologia voltada para os anos sessenta e setenta –, para se readaptar a um novo tipo de regime de consumo. Nasceu a ideia do estoque zero. Só se faz aquilo que é pedido. A ideia dos tempos do fordismo, de fazer a produção forçar o surgimento da demanda, perdeu o sentido. Hoje é a demanda que controla a produção. Com salários menores e com o Estado se dizendo “estado mínimo”, cedendo suas companhias para a iniciativa privada – comandada pelo dinheiro ampliado gerado no mercado financeiro –, a sociedade emergente dessa situação põe na jogada o sistema de crédito (Neoliberalismo e Financeirização). Lojas viraram financiadoras de suas próprias bugigangas. O trabalhador que, então, quer algo, sempre consegue, mas se endivida e ganha um novo tipo de controle. É controlado agora pelas dívidas; participa do controle de outros à medida que ele próprio se insere na rede virtual e exerce identidades que o chamam para o fortalecimento do senso comum. Isso sem contar que para estar na rede hoje todos nós usam do para tudo o Google, uma máquina enorme de homogeneização e conservadorismo da linguagem. Nenhum de nós escapa hoje de trabalhar para o Google, Facebook, Microsoft e Amazon. São as quatro grandes, cujo lucro só aumentou em tempos de Covid. Não perdem para uma outra também que cresceu, a indústria farmacêutica.

Esse mundo novo é desconhecido do livro de Ciro Gomes, que parece querer reavivar o mundo do nacional-desenvolvimentismo como se pudéssemos desconsiderar todas essas mudanças.

No meio disso tudo que citei, nós fomos nos desindustrializando. Tornamo-nos uma sociedade em que todos trabalham no setor de serviços. Fizemos o que o mundo todo fez. A diferença para com, por exemplo, a Venezuela, é que nossa economia ainda é diversificada. A diferença para com, por exemplo, os países ditos ricos, é que não nos desindustrializamos e nos reindustrializamos segundo ramos tecnológicos sofisticados.

Podemos hoje pensar num programa de acordos de transferência de tecnologia. Podemos pensar em um Brasil cuja escola volte a contribuir com o General Intelect. Mas acreditar que o nacional-desenvolvimentismo pode gerar um neonacional-desenvolvimentismo é desconhecer o movimento do capital. Este, por sua vez, tem no mercado financeiro a chance fantástica de crescer se livrando da mercadoria material. Lembrando as equações de Marx, a da produção era D-M-D’ – o dinheiro que gera dinheiro por intermédio da mercadoria. A equação que o mercado financeiro realiza é D-D´’, o dinheiro que se reproduz – por juros, efetivamente. O capital vai voltar, por decisão política de Ciro, se presidente, a festejar a primeira equação e deixar de lado a segunda? Duvido.

Esse mundo complexo, que expus aqui de modo maximamente resumido, pode ser revogado por leis que controlem o capitalismo financeirizado, de modo a privilegiarmos nossa produção material? Esse mundo em que a própria produção é, em grande parte, produção não física – saberes tecnológicos, cuidados do homem, produção de novas subjetividades no trabalho da produção do homem pelo homem – pode ganhar leis políticas que permitam a um país relativizar a financeirização.

O livro de Ciro Gomes não aborda essa história. Ou seja, é um livro que parece não dizer nada do mundo em que vivemos. Não reconheci o meu mundo e o meu Brasil, onde eu trabalho e onde criei meus filhos, como sendo o Brasil de Ciro. O Brasil de Ciro tem problemas de juros e de dívida, tem problemas internos, parece fora do planeta Terra no qual as transformações que citei ocorreram.

Paulo Ghiraldelli. 63, filósofo.

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