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Rousseau e a sua utopia

Alguns manuais iniciam o tópico sobre Rousseau pela história de sua relação com seus filhos. Ele, o filósofo que escreveu O Emílio ou Da Educação, colocou os cinco filhos no orfanato – é o que anunciam. Manuais desse tipo emendam outras informações similares: acham que Rousseau criou, com O Emílio, um tipo de livro prático de pedagogia.

A primeira informação não tem qualquer importância para a filosofia de Rousseau. A segunda informação tem importância: é um erro que pode fazer estudantes, principalmente de filosofia e de pedagogia, nunca mais entenderem Rousseau.

Rousseau teve uma vida difícil e, de fato, teve filhos e os entregou ao orfanato. Mas, talvez isso tenha sido uma boa coisa para os garotos! Rousseau não possuía estrutura familiar para criá-los e, bem antes do final da vida, brigando com o filósofo David Hume que o acolhera amistosamente, mostrou claramente que vivia sob algo que hoje identificaríamos como um tipo de neurose, mania de perseguição e depressão aguda. Ponto. Dito isso, é o que basta da biografia.

Sobre a pedagogia, há de se saber que Rousseau foi preceptor e nunca aplicou o que falou em O Emílio aos meninos que tentou educar. Isso por uma razão óbvia que, no entanto, muitos desconsideraram. O Emílio é antes a descrição de uma utopia sócio-político-pedagógica que um romance pedagógico. E certamente não é um tratado de didática. A distância entre A Didactica Magna, de Comênio, e o livro de Rousseau, nem sempre é reconhecida corretamente por historiadores da educação, que colocam ambos no mesmo fio da cronologia. Mas, para escapar desse erro crasso, o melhor modo é notar que, como toda utopia clássica, o que aparece em O Emílio (1762) é puro exagero e visa servir para combater o exagero contrário, o que se faz na sociedade real. Contra a educação vigente, que faria a apologia do “homem civilizado”, Rousseau criou a sua educação utópica, a apologia do menino criado na natureza e segundo a natureza; este menino nada seria senão um similar pedagógico do que, no campo político, Rousseau chamou de “o bom selvagem”.

“Bom selvagem”? Sim – aí está a chave dos escritos do filósofo Jean Jacques Rousseau (Genebra, 28 de Junho de 1712 — Ermenonville, 2 de Julho de 1778). O que é o bom selvagem? Trata-se do homem em um hipotético estado de natureza. Nessa situação, o homem é bom – naturalmente bom. O que faz o homem tornar-se capaz de maldade e de criação de ferros para si mesmo é a sociedade e, nela, a cultura. Exatamente o que aparecia como o valor positivo para o seu século, o século XVIII – a época par excellence do Iluminismo –, é o que foi denunciado por Rousseau como o que antes joga o homem a ferros que o liberta. Eis então que sua frase célebre ecoou para os nossos dias: o homem é bom, mas a sociedade o corrompe.

Essa visão da cultura e da sociedade e, em especial, da ciência e das artes, em Rousseau, é legitimamente filosófica. Todavia, sem cometer deslizes de excesso de contextualização, não é errado ver Rousseau entendendo a marca negativa da cultura e da sociedade por conta de sua observação crítica ao grupo social do qual ele não veio – a aristocracia.

Rousseau falou da sociedade e da cultura de um modo geral, como autêntico filósofo. Mas, é claro, ele não se inspirou no vazio. A sociedade de Corte, com todas as suas etiquetas, máscaras, convenções e, portanto, mentiras, era o que ele tinha em mente como modelo da sociedade em geral que, enfim, não lhe servia. Essa sociedade se apegou à artificialidade da cultura, ao verniz – uma metáfora deveras significativa –, e não propriamente ao entendimento do homem e do mundo. Aliás, conhece-se bem esse processo de adoção do verniz aristocrático em oposição ao que seria o comportamento “espontâneo e natural” dos do “terceiro estado” francês. Sabe-se bem, pela história, o quanto isso vigorou em toda a Europa. Entre tantos elementos que nos trouxeram um retrato desse mundo de transição da hegemonia da vida nobre para o misto de costumes absorvidos pela vida burguesa, não há como não se lembrar do sociólogo como Norbert Elias, que estudou bem esse processo, e um filme como Ridicule (Patice Leconte, 1996), que o estampou com maestria. A sociedade de Corte se tornou o paradigma da sociedade das convenções. O mundo da Corte, ao menos aos olhos da burguesia dos séculos XVII e mais ainda do XVIII, se mostrava como artificial ao extremo e, então, diante dele, não houve filósofo que não tenha ficado tentado em valorizar o seu contrário, ou seja, o não convencional ou, nos termos da época, o natural. Foi isso que Rousseau fez.

Todavia, Rousseau fez mais. À medida que nossa sociedade moderna, burguesa, se tornou uma espécie de paródia empobrecida da sociedade de Corte, o que Rousseau criou em abstração, que é a sua crítica à civilização, se tornou também a crítica à nossa sociedade. Uma crítica legítima, válida e, por isso mesmo, cativante. Uma crítica que, inclusive, se misturou à própria sociedade burguesa. Pois, em parte, a sociedade burguesa não é só uma imitação da sociedade de Corte, ela é também um campo de difusão do romantismo, um movimento em relação ao qual Rousseau foi não só um adepto, mas um protagonista.

Por isso, tendemos a aplicar à nossa sociedade moderna, burguesa e romantizada, a crítica que Rousseau levou adiante, inspirado pela sua objeção à sociedade de Corte, nada burguesa. Tendemos a dizer que tudo que podemos batizar de “natural” é bom, enquanto que tudo que chamamos de “artificial” é negativo. Dizemos que tudo que guarda o que há de nós vindo do “bom selvagem” ou da “infância” é bom porque é puro, e que essa pureza se corrompe quando em contato (errado) com a sociedade e a cultura. Nesse processo, em grande parte, valorizamos a própria noção de infância criada por Rousseau. E com ela em punho geramos toda uma longa tradição de filosofia da educação que, nos nossos dias, aparece em nossos manuais de didática, de forma mitigada, como sendo os “princípios do movimento da escola nova”.

Mas, como que nasceu a noção de infância rousseaniana?

A noção de infância de Rousseau é bem entendida quando a tiramos de sua obra filosófica, em especial de seus trabalhos epistemológicos e metodológicos. Nesse caso, nada como ver o trecho em que Rousseau, à moda de René Descartes, expõe o seu método de trabalho. O trecho é interno a O Emílio (1762), e está na parte intitulada “Profissão de Fé do Vigário de Sabóia”:

Tendo em mim o amor à verdade como filosofia, e como método único uma regra fácil e simples que me dispensa da vã sutileza dos argumentos, volto com a regra ao exame dos conhecimentos que me interessam, resolvido a admitir como evidentes todos aos que, na sinceridade de meu coração, não puder recusar meu assentimento, como verdadeiros todos os que me parecerem ter uma ligação necessária com os primeiros, e deixar todos os outros na incerteza, sem os rejeitar nem os admitir, sem me atormentar com os esclarecer desde que não me levem a nada de útil na prática. i

O que se diz neste parágrafo é que frases como “Há um gato sobre o tapete” ou “Dois mais dois somam quatro” ou “A escravidão é um crime” são enunciados que, se creio neles como evidentes e os tomo como verdadeiros é porque posso trazer cada um deles para a minha intimidade e, sem estar maculado por qualquer tipo de insinceridade, dar meu real assentimento a eles. Ou seja, o que vale como régua de validação do conhecimento é a sinceridade. O termo “coração”, no caso, é metafórico. Fala-se em coração para que não se tenha dúvida que a sinceridade é alguma coisa que tem a ver com o sentimento. Trata-se de ser honesto consigo mesmo. Em nenhum momento, há de se querer enganar. O auto-engano é o grande perigo para a verdade.

Ora, mas como eu seria insincero comigo mesmo? Em relação a alguns enunciados, como “o gato está sobre o tapete” ou “dois e dois são quatro”, ao menos à primeira vista, parece haver pouca chance de eu querer me enganar. Todavia, em relação ao enunciado “a escravidão é um crime”, parece haver bem mais chances. Posso achar a escravidão ruim e, no entanto, por exemplo, não achar que ela possa sempre, em qualquer situação, ser um crime. Dependendo da minha localização social e geográfica, posso tomá-la como muito ruim sem, no entanto, avaliá-la como um crime. Uma vez em uma sociedade onde a escravidão é um crime, posso concordar com os cidadãos daquele lugar que se trata, sim, de um crime. Mas, de volta a quatro paredes, consultando minha sinceridade, estou sendo honesto comigo mesmo? Ou seja: o que afirmei se sustenta a quatro paredes. Ou a quatro paredes, na hora que sou sincero ou, dizendo de modo mais exato, na hora que posso ser sincero, não considero a escravidão um crime? Ora, a quatro paredes, eu comigo mesmo, consultando unicamente o meu coração, eu jogaria alguém na cadeia por ter escravos? Considero, na minha intimidade, quando só eu sou testemunha, a escravidão um crime? A resposta a esse tipo de pergunta é que irá crivar meu assentimento ou não à frase “a escravidão é um crime”.

O que o método de Rousseau defende é que nas três frases citadas pode-se aplicar este único critério: o de ser sincero a quatro paredes. O que vale é que, na intimidade, na checagem em relação ao coração sincero, dou assentimento ao que inicialmente tomei como evidente.

Mas, se Rousseau toma isso como seu método, ele se torna infalível? Não há possibilidade do erro? Claro que há. Então, resta aí uma pergunta: como é possível o erro? Ora, o erro emerge quando se imagina que se está sendo sincero e, no entanto, essa condição não se dá. Isso ocorre? Por que eu haveria de ser insincero comigo mesmo?

Neste detalhe é que a teoria social de Rousseau põe sua cunha: a idéia básica é a divisão entre o artificial e o natural. Uma vez que o “bom selvagem” ou a criança deixam a condição natural para viverem na sociedade, há a necessidade da aceitação das convenções sociais e todo o artificialismo social. Há uma perda de cada um na prática das convenções e do artificialismo da vida social. O que perdem? Bem, podem perder a si mesmos. Enquanto sou criança e escapo da vida social, sou puro e minha sinceridade é realmente impoluta. Sou guiado pela minha espontaneidade e isso favorece minha criatividade. Mas, ao entrar em vida social caio na rotina e no convencional, acostumo-me à verdade social que, enfim, não é nada senão a mentira para a sobrevivência em sociedade. São tantas máscaras que a vida adulta coloca que, depois, a quatro paredes, não sei mais quem sou eu, se sou a máscara ou o rosto. Pior ainda: não sei mais o que é a máscara e o que é o rosto. Tento encontrar o meu eu, mas ele se esconde. Perco a capacidade de ser sincero. Sinto-me confuso. Deixo de lado o meu coração sincero uma vez que ele, mesmo a quatro paredes, não consegue mais ter o sentimento da sinceridade. Perdi a condição de dizer o que é mentira e o que é verdade e, então, perdi a condição de dizer o que é o falso e o que é o verdadeiro. Aliás, posso inclusive não saber que perdi essa condição, de tão alheio que fiquei de minha natureza.

Tudo isso que disse pode ser sintetizado nesta frase: Rousseau torna a questão do conhecimento uma questão moral. Faz a dicotomia falso-verdade caudatária da dicotomia mentira-verdade.

Ora, mas e se eu não tivesse saído da infância abruptamente? Aí sim, eu teria ficado mais tempo protegido pela minha própria natureza e, mesmo que mais tarde eu tivesse de entender as convenções, talvez eu viesse a conseguir levar para a vida adulta muito da minha sinceridade infantil. Eu passaria para a situação de estar sob as convenções da sociedade, mas poderia utilizar da minha razão sobre a minha sinceridade, ainda intacta. Esta, como primeira instância legítima para dar o aval à evidência, estaria em condições melhores, viveria menos esfarrapada, o que certamente teria ocorrido se houvesse o convívio precoce com as convenções, máscaras e artificialismos.

Assim, para a saúde da filosofia, nada melhor que a proteção da criança, garantindo a ela uma infância livre e de acordo com a natureza, longe da coerção da vida social e longe das diretrizes ligadas às mascaras elaboradas pela cultura. A infância longa e que precisa ser afastada dos tentáculos da vida adulta é a infância rousseauniana. A infância pura e capaz de ser mais filosófica que a própria vida do pretenso sábio adulto seria exatamente a vida de criança que Emílio viveu exemplificando uma educação utópica.

Assim, Rousseau chegou a afirmar que Emílio só olharia para um telescópio, para ver as estrelas, quando inventasse um. Ora, então nenhum garoto educado por Rousseau olharia para as estrelas e, assim, também não se iniciaria na astronomia. Qual a chance de um aluno nosso inventar um telescópio para, só então, ficar sabendo de algo de astronomia? Mas, é claro, Rousseau não disse isso para dar diretrizes pedagógicas para qualquer escola. Ele disse isso para lembrar que Emílio não iria manipular um objeto dado pela cultura, o telescópio. Ele iria manipular um telescópio se, pela sua criatividade e espontaneidade, pudesse inventar um. Caso não inventasse e, então, tivesse de buscar o telescópio pronto, antes perderia que ganharia; com o telescópio viria junto toda a cultura e, assim, Emílio adentraria automaticamente para a vida social e cultural. Tudo correria em favor de um Emílio rapidamente não mais criança. Emílio estaria mais cedo no mundo da artificialidade, pronto para ser corrompido. Emílio se perderia.

A idéia de Rousseau não era criar um Emílio feliz, mas gerar a idéia de uma sociedade que, se pudesse educar suas crianças protegidas dela própria, seria melhor que a sociedade vigente. Teria grandes condições de não perder o filósofo existente em cada criança, morador da infância. Uma sociedade assim, de filósofos, não seria enfim o que se pedia no século XVIII, e o que foi imortalizado pela fórmula de Immanuel Kant na expressão “sociedade esclarecida”? É difícil não responder positivamente a uma questão assim colocada.

© 2010 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ

i
i Rousseau, J. J. O Emílio ou Da Educação. São Paulo e Rio de Janeiro: Difel, 1979, pp. 303-4.

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