O “conhece-te a ti mesmo” inscrito no Templo de Apolo, uma vez adotado por Sócrates, nunca significou qualquer sugestão para a introspecção, nem mesmo para o conhecimento de limites próprios como quando pensamos em olhar no espelho para fazermos uma reflexão sobre nossos desejos e possibilidades. Sócrates trabalhou com esse lema a partir de um registro articulado à polis, não a qualquer coisa que possa lembrar a nossa subjetividade moderna. Sócrates entendia o “conhece-te a ti mesmo” a partir do que a polis confere ao homem, se se trata de um homem livre ou escravo, de um monstro a ser posto para fora dos muros da cidade ou um deus a ser adorado. Por isso, quando falava de seus deveres próprios, Sócrates se punha em conversa com as Leis da cidade, tomando-as objetivamente, como entidades vivas capaz de inquiri-lo.
Platão no Críton expõe bem essa situação. Quando Críton propõe que Sócrates fuja da prisão, após sua condenação na Assembléia, este vê que o discípulo havia aprendido pouco. Ele chama as Leis para que elas expliquem a Críton como que ele, Sócrates, estaria destruindo a cidade se, após ter usado e usufruído das leis para a sua prosperidade até então, agora, por razão de um erro dos homens e não delas, quisesse desobedecê-las. A relação do eu socrático com as normas éticas nunca foi a de consultar uma subjetividade sobrecarregada, e então encontrar motivos quase idiossincráticos para tomar decisões. Suas decisões vinham das decisões objetivas de sua vida como homem enquanto grego, não bárbaro, portanto, homem da polis.
Quando mudamos de cena, deixando o mundo clássico antigo para passarmos para o mundo ainda helênico, mas já cristão, vemos a relação de Agostinho para como as leis em uma situação completamente diferente. Em suas Confissões, ao lembrar do roubo de peras da juventude, Agostinho começa localizando as leis como leis de Deus, objetivas, mas também subjetivas porque impressas por Deus em seu coração. Toma as desobediências das leis como um ato seu de vontade, para ter o prazer de romper com outra vontade, a vontade de Deus. Esse prazer seria efêmero, portanto, vicioso. O pecado do roubo seria uma falta contra os homens, mas pecado mesmo, contra Deus, não seria pelo roubo, mas pelo vício de alimentar seu próprio ego com o prazer momentâneo de romper com a proibição, a vontade de Deus. Nesse texto, Agostinho lida com as leis já considerando a existência do exterior e o interior do homem. O “homem interior” de Agostinho se faz a partir de um núcleo capaz de dilaceração, o núcleo da volição livre do homem.
O homem do Renascimento é diferente desses dois outros modelos. Encontramos este homem e seu eu renascentista de forma bem interessante e clara nos Ensaios de Montaigne. Este, por sua vez, separa em duas instâncias a noção de eu interior: consciência e intimidade. É interessante que não confunde uma e outra. Ao falar da consciência, remete à história do homem que tinha medo de encontrar com inimigos e estes o reconhecerem, enquanto estava se passando por um deles. Esse homem tinha certeza que sua consciência acabaria por denunciá-lo. Ele seria traído pela consciência. Mas, ao tratar do tema do arrependimento, Montaigne deixa a consciência de lado e lida com interior e exterior como algo pertencente à intimidade. Nesse caso, enfatiza que a quatro paredes sou eu mesmo e sei de minha verdade, ou da própria verdade no que ela tem de possível. Mas, no mundo público, visto minha capa, meu papel teatral, e com isso fico até mais descansado. Pois no teatro há regras para o papel. No mundo interior, ao contrário, sou pego pelo eu sem regras que sou eu mesmo, que nem sempre pode estar tranquilo, que pode muitas vezes estar tão distante do exterior, que seja um incômodo ficar com este eu, de tanto que esconde e de tanto que tem de errado e faltoso. A virtude de um homem, e nisso Montaigne se vê virtuoso, é nunca sair de sua ‘casa’, de seu eu íntimo, a ponto de, indo para fora, fique muito distante do abrigo do lar. Um homem sem arrependimentos, porque sempre age por perto do seu interior ou quase isso, é um um eu renascentista ideal. Ou seja, um homem público que é quase igual ao homem a quatro paredes é o homem correto, que pode enfrentar as leis. O homem é homem se age por inteiro, lembrando um pouco o eu estoico.
Aqui, Montaigne abre dois caminhos: ao apontar para um eu que é a consciência que se deixa ver, indica Descartes; ao falar da intimidade que pode acabar sendo distante da pessoa, da persona pública, abre espaço para as digressões de Rousseau. Montaigne funda o caminho do século XVII e do XVIII. O caminho da subjetividade cartesiana como Cogito, e o da subjetividade romântica rousseaunia como ‘coração sincero’. O homem do Renascimento prefigura o homem moderno. O que parece ficar distante, aí sim, dessa subjetividade renascentista que prefigura a moderna, é aquela que irá compor a modernidade tardia e, depois, no final do século XX, ser rebatizada como subjetividade pós-moderna.
Na modernidade tardia, a subjetividade não é uma instância de acesso fácil. Nós mesmos, ao irmos para nosso eu, podemos encontrar não o ego, mas o enganoso inconsciente falado por Freud, ou então o eu ideologizado teorizado por Marx, ou então o eu que não é um eu propriamente dito, que é a subjetividade sem parâmetros ontológicos, como em Nietzsche. Só com essa tríade rompemos de fato com a subjetividade dada por Montaigne.
© Paulo Ghiraldelli 2016