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Bolsonaro e a ciência

 

A ciência tem lado? Sim! A ciência é política? Sim! Essas respostas são de alguém que não é um positivista. Portanto, trata-se da filosofia de alguém que pensa a ciência como feita por humanos e, portanto, incapaz de se desvencilhar de uma vez por toda de alguma subjetividade embutida em perguntas e respostas científicas. Um positivista ou um platonista apostariam na objetividade do saber humano como se ele fosse um saber divino, ou seja, um saber capaz de barrar a subjetividade de modo que ela não interferisse nesse saber. Deus é um cara sem subjetividade. Mas, exceto essas dois tipos de filósofo, os outros todos acreditam que na relação entre o homem e o seu próprio saber, a objetividade é sempre uma questão de grau.

Todavia, tudo que disse nesse parágrafo é o que um filósofo gasta uma vida estudando. E termina a vida sem concluir, uma vez que esse problema, chamado problema da objetividade do conhecimento ou problema epistemológico, é um campo tradicional da filosofia – 25 séculos e permanece em aberto!

Assim, quando vejo que alguns quererem resolver esse problema em artigos de jornal ou simplesmente gritando para o outro palavras de ordem “negacionista” e “não-negacionista”, fico chateado. Não sabem do que falam. Mas querem falar. Isso se chama arrogância da ignorância.

O negacionismo é uma bobagem porque não faz ideia do que é “ciência baseada em evidências”. Mas muitos médicos que colocam fé na “medicina baseada em evidências” sabem o que é evidência tanto quanto jornalistas e advogados – animais que só ganham de símios; não todos, mas uma boa parte! Pois a evidência em ciência é alguma coisa cuja evidência os filósofos discutem tanto quanto todos os problemas discutidos na epistemologia. Evidência é um termo que cai bem para a lógica. Quando transferido para o campo da epistemologia, torna-se um problema.

O certo é que algumas pessoas acreditam que toda essa discussão é inútil, e que o que vale é a ciência que “funciona” ou “não funciona”, Mas mesmo esse conceito, de “funcionamento”, tem longa história. E não somente a história da estatística e das formas de testar grupos experimentais. Há mais que isso. Há o próprio conceito de funcionamento como problemático, o conceito de função como algo estranho.

Com Aristóteles toda a nossa biologia nasceu funcional. Tudo tinha que ter função. Os biólogos e médicos são aristotélicos. Se eles não encontram uma função para um órgão ou para uma relação ou para um ser vivo qualquer, eles começam a ficar deprimidos. Por isso eles jamais aceitaram a biologia de Nietzsche ou de qualquer outro que rejeitou a ideia de função e apelou para ideias cosmológicas. A vontade de potência de Nietzsche pode ser lúdica, ou seja, não ter função. Pode simplesmente nos mostrar o aleatório. Mas, mesmo ela, pode ser vista de modo funcional: a potencialização seria funcional. Será? Pode ser, mas ela não seria funcional no sentido da preservação. E isso contraria os princípios que médicos seguem: só somos racionais se nos preservamos. Assim pensam os médicos e quase todo mundo, principalmente os psicólogos. Hegel disse o contrário: ele nos alertou que um homem pode preferir morrer do que viver sem o reconhecimento do outro. Hegel foi tão ou mais ousado que Nietzsche!

Mas nenhum homem que busca a morte pela bobagem, pelo exercício do capricho, é hegeliano. É apenas gado. O culto da morte de Bolsonaro é o culto do gado, daquilo que vemos em seitas suicidas.

Bolsonaro e sua trupe, jogando do lado da não preservação, é o antimédico e o antirracional. Sua racionalidade, se existe, é torta. Pois ela busca a “imunidade de rebanho”, e esta é tecnicamente inviável: morreria tanta gente para alcança-la que ela seria inútil do ponto de vista intelectual e genocídio do ponto de vista ético. Nesse caso, não estamos mais em terreno filosófico nenhum, apenas no crime, no fascismo, na antipolítica ou na biopolítica como termo assustador.

Quando Bolsonaro for deposto, deve pagar os crimes que cometeu em um tribunal terreno. Não podemos deixá-lo nas mãos da justiça divina, seria desonrar Deus.

Paulo Ghiraldelli, 63 , filósofo