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Alain Badiou e o real perdido

Com tantas correntes diferentes de pensamento filosófico, como podemos falar em uma história unificada da filosofia? Em termos gerais medievais, modernos e contemporâneos compuseram uma só história uma vez que nunca se viram desligados da conversa inaugurada por Platão, relatando a disputa de Sócrates e sua própria com os sofistas.

Por um lado, Platão sempre defendeu a tese de uma existência dupla, a do mundo real e a do mundo aparente. Por outro lado, sofistas como Protágoras fincaram o pé na tese de que “é o homem a medida de todas as coisas”. Seria frívolo dizer que a filosofia, hoje, não tem mais a ver com essa disputa. Ainda estamos envolvidos com a ideia de que existe uma vida objetiva, extrahumana e posta pela dicotomia real-aparente, e que, contra essa tese, há a noção de que o melhor que podemos fazer é recolher as diversas perspectivas – as narrativas ditas subjetivas – sobre nós mesmos. Atualmente, dentre as correntes filosóficas contemporâneas, eu próprio admiro o perspectivismo de Nietzsche, o pragmatismo americano e a antropologia surrealista de Peter Sloterdijk, que podem encontrar lá na Grécia antiga, falando de um modo bem amplo, um precursor como Protágoras. Os opositores a uma tal filosofia são, claro, os objetivismos platonistas, e nesse caso um bom exemplo é o marxismo de Alain Badiou.

Mas, afinal, no que se pode divergir de Badiou?

Um dos mais belos textos de Badiou é o Em busca do real perdido, uma palestra de 2012 publicada em 2015 e agora posta no mercado brasileiro (BH, Rio e S. Paulo: Autêntica, 2017). Neste escrito, ele louva Platão. O enaltece dizendo que a filosofia do inventor da filosofia é a que tematiza a ‘saída’. É a doutrina da fuga da situação da caverna, o lugar que apresenta o aparente como sendo a realidade. Todavia, é por uma via, digamos, intuitiva que ele se encontra com o dualismo platônico. Não é a via do próprio Platão.

Platão chega à situação de usar o modelo da caverna tentando resolver os impasses criados pelo confronto entre o mundo heracliatiano em constante mudança e o mundo parmenídico de suma estabilidade. Badiou chega ao modelo dual por pressentir que há um peso excessivo no que chamamos de real, que seria, na verdade, o aparente. Justamente por conta desse caráter impositivo de real, então, teríamos de pensar que estamos na caverna, amarrados, presos pelo autoritarismo da visão das sombras no fundo da caverna. A ideia da ‘saída’ é uma ideia já derivada em Platão, criada pelo filósofo, antes de tudo, por conta dele levar a sério dois pré-socráticos, Heráclito e Parmênides. A ideia da ‘saida’ em Badiou é primordial e vem por conta de que ele sente o peso ontológico oferecido como um peso excessivo da caverna, como um real que tenta ser convincente demais, impositivo demais, e por isso mesmo estaria enganando, seria apenas aparência. Um real que teima em se fazer forte e único, só levanta suspeita – é o que parece sentir Badiou.

Talvez devêssemos respeitar Badiou e não cobrar dele qualquer abandono de petição de princípio. Se é assim, então o melhor é admitir que ele não inventa um dualismo, como faz Platão, é certo, mas o constata por meio de uma espécie de desconfiança de opressão. Badiou cita a economia: uma ciência que quer nos convencer de que o funcionamento do mundo como ocorre segundo a sua descrição é o funcionamento do mundo praticamente natural. Badiou toma isso como uma imposição e, na desconfiança da imposição, lança mão da ideia platônica de que se trata de uma imposição não muito diferente da existente na caverna. Afinal, por qual razão não deveríamos sentirmo-nos em situação de prisão, se a força de determinados discursos não se cansa de se repor?

Ainda que ele não inicie confessando qualquer petição de princípio, é possível vê-la e, ao mesmo tempo, não tomar tal coisa como elemento de descrédito. Ou seja, podemos dar aval para a sua intuição que, enfim, não é tola. A conversa dos realistas ingênuos é tão insistente, é tão posta e reposta como tese de que a sociedade pode ser descrita pela economia, que nem mesmo quando a economia faz todas as previsões erradas – e por isso há as crises –, sua canção perde o encanto. Do modo que entendo Badiou, parece que ele se baseia nessa força como o elemento de fraqueza, o elemento pelo qual deveríamos desconfiar da solidez do que tomamos como real.

Assim agindo, podemos continuar a ler Badiou e nos deliciarmos com a sua utilização da dualidade platônica. Sua intuição teórica faz belo trabalho ao usar do espanto para confirmar a tese da dualidade do mundo.

O que nos espanta? Badiou aborda de maneira bastante instigante o fenômeno do escândalo. Lembra-nos que quando ficamos sabendo de algo que nos escandaliza, isso ocorre por um breve momento, e se abre para nós como uma fresta pela qual saímos do vivido, do aparente, para vislumbrar um cadinho do real. Um político idôneo se apresenta como corrupto, a vida íntima de um pudico deixa escapar um detalhe estranho, um doping esportivo de um atleta reverenciado é revelado. São fatos corriqueiros, mas na particularidade de cada um, de fato esses são casos não sabidos e, então, por um momento, sua revelação causa espanto. Ora, espanto tem a ver com filosofia, desde sua origem. Eis então que por esse pequeno momento de espanto, causado pelo escândalo, a filosofia tem chance: mostra-se um raio de luz lá de fora da caverna, muito mais brilhante que as sombras projetadas na parede. Vemos então, nesse raio, no escândalo pontual, um aperitivo do real, que nos abre o apetite para ele e que, ao mesmo tempo, como subproduto, nos confirma a própria intuição da dualidade do mundo. O escândalo nos faz sempre pensar que ele, revelado, revelou o real e que o mostrado nada era senão o mero aparente. O escândalo seria uma maneira de dizer: Platão e todos que seguiram sua trilha fundamental estavam certos, não vivemos senão na caverna.

Com a ideia de que a impositividade do real gera desconfiança, e com a ideia de que o escândalo confirma a intuição de que o real é o que se esconde sob a aparência, Badiou tem sua base para seguir caminho e expor melhor como entende essa estrutura dual. Querendo não ser dogmático e se livrar do caminho racionalista ou empirista, ou seja, o de partir de conceitos e definições de um lado, ou partir da experiência sensível de outro, Badiou opta por citar exemplos. Escolhe três. Um vindo do teatro, outro do campo definicional e, por fim, um terceiro recolhido da poesia.

Do campo do teatro ele recolhe a anedota da morte de Molière no palco, ao mesmo tempo que representava um doente. Badiou arranca daí a ideia de como que a máscara teatral funciona não como o não existente, mas como algo existente, tão real quanto o real que esconde. Sem a máscara com algum grau de realidade, não haveria um real escondido. A realidade da máscara garante que o real se esconda. Uma máscara falsa não seria máscara e não esconderia nada. Desse modo, Badiou consegue defender sua tese de que há uma formalização da situação vivida, no aparente, e isso garante que o real escondido possa ser escondido e ser o real.

Do campo do definicionismo ele aponta a ideia de que o infinito não pertence ao âmbito dos números naturais mas precisa estar de fora, pressuposto, para garantir os números naturais. Tendo isso em mãos, Badiou mostra que o real precisa ser estabelecido pelo que é o básico, o que é até mesmo o impossível, mas que dá fundamento de possibilidade para o existente, para o aparente. Sem o real pensado como base de condições para o aparente e para si mesmo, não se instauraria nenhum tipo de dualidade real-aparente. Portanto, nem se falaria em real.

Finalmente, do campo da poesia, ele toma como ponto de partida “As cinzas de Gramsci”, de Pasolini. Dissertando sobre esse poema ele fala da contestação da tese que o real é mostrado segundo a ideia de que ele, um dia, seria revelado pela história. A poesia em questão seria uma forma de lembrar que Gramsci desautorizou uma tal ideia, dizendo para não continuar o que ele vinha fazendo. Ou seja, não se trataria mais de acreditar que a história fará romper de seu próprio peito um destino real, diferente da carcaça humana na qual estava presa.

O exemplos são belos e coadunam com o início intuitivo do texto. Mas, em cada um deles, Badiou desliza muito rapidamente, como é de praxe nesse tipo de platonismo, para a tentativa de fazer filosofia social. Nesse detalhe, surge o ponto cego do dogmatismo. Badiou tenta encontrar “aplicações” dessa teoria para a nossa situação política. Para não falar mais do que o necessário, fico apenas no que envolve o primeiro exemplo, o do teatro.

Pelo exemplo, Badiou chega à tese de que “todo acesso ao real é também sua divisão”. Cito o trecho que corresponde a uma tal tese para que fique claro do que se trata:

“Poderíamos dizer, por exemplo, que o real sempre se revela na ruína de um semblante. (*) E isso equivaleria a afirmar que não existe nem acesso intuitivo direto ao real nem acesso conceitual direto ao real, mas que há sempre essa necessidade indireta de que seja na ruína de um semblante que o real se manifeste. Em outras palavras – e continuo aqui com metáforas teatrais –, só se chega ao real desmascarando-o. O real – como a filosofia segundo Descartes – avança mascarado. Logo, é preciso desmascará-lo ao memo tempo que se leva em conta o real da própria máscara.” (p. 23)

Poderíamos, claro, questionar essa concepção de real, que se instaura a partir da metáfora teatral, entre outras. Mas, como disse de início, é possível aceitá-la se aceitamos um modo platonista modificado, como este com o qual Badiou opera. Assim, o problema não é nesse ponto, mas no decorrente dele. O buraco negro aparece quando Badiou tenta fazer o que chama de “aplicações” – ir à filosofia social. Novamente opto pela citação, para não deixar dúvidas sobre o que está em jogo aqui:

“Se tentamos aplicar essas observações à situação contemporânea, devemos nos perguntar: qual é a máscara do nosso real e, portanto, qual é o semblante próprio do capitalismo imperial mundializado, sob que máscara ele se apresenta que impede que sua identificação o divida, qual é a máscara ao mesmo tempo real e tão afastada de qualquer real que é quase impossível arrancá-la? E então lamento ter de dizer aqui que o semblante contemporâneo do real capitalista é a democracia. É sua máscara.” (p. 25)

Assim, na “aplicação”, o capitalismo surge inesperadamente como o que é o real e a democracia liberal ocidental como sendo seu invólucro, e que se porta como o aparente, mas também, pela sua existência que dá o invólucro ao capitalismo, como real. Um novo real não viria apenas da libertação desse real do seu mero aparente, a democracia, mas implicaria na quebra do próprio real nuclear – o capitalismo – à medida que seu semblante, sua aparência, lhe é removida. Entra pela janela o marxismo que parecia ter sido expulso pela porta, ou seja, pela sofisticação inicial do texto.

A visão de mundo marxista é de tal modo assumida por Badiou, sem qualquer questionamento, que lhe parece normal que seus ouvintes, e depois leitores, possam tranquilamente aceitar não só que devemos pensar de maneira dual, mas que a dualidade que temos no nosso ambiente social hoje seja exatamente esta: capitalismo mascarado por democracia. Claro, a partir daí vem também o terceiro passo como lógico: se eu rasgo a máscara, sendo ela aparência e ao mesmo tempo o rosto de carne do real, então rasgo o real e dou espaço para um novo real. Molière morre no palco, como o personagem deveria morrer, mas morre também como pessoa, encenando o seu personagem de um modo realista demais e, ao mesmo tempo, cumprindo o ideal maior de ironia e humor da peça.

Assim, por um deslize sem justificativa, o esquema marxista base-super estrutura (que se autorevoluciona por contradição interna), surge para dar aval ou mesmo se transformar no esquema capitalismo-democracia, que se assume como real-aparente. Ou ainda: o real e o real formal; o real e a máscara real. Inicia-se então um discurso em que a história não mais está a favor de ninguém, mas ainda assim, deve abrir-se para um outro real que não o real impositivo, e que para isso ocorrer é necessário quebrar esse real na quebra conjunta de sua ideologia, a democracia liberal. O grande castelo teórico inicialmente construído por Badiou rapidamente se encurta e se apequena. Todos os que desconfiam disso são tratados e gente de classe média envolta no entretenimento pascaliano. O discurso de fim do capitalismo como a única chance de viver o real efetivamente real, um novo real, é a conclusão.

Não se trata aqui de condenar o marxismo por desejar um novo real. Seria loucura dizer que nossa realidade é boa e que não temos que alterá-la. Mas o modo como Badiou põe as coisas na sua “aplicação” desanima um pouco. Lembra os velhos cacoetes do século XX em seus piores momentos teóricos. De onde se pode tirar que a dualidade real-aparente que vivemos – se é que a vivemos – pode sair do plano postulado ou intuído para ser uma determinante dualidade, trazida por uma teoria como as outras, a teoria que diz que o capitalismo estabelece com a democracia a mesma relação do par platônico? Não é esse um dos pontos mais frágeis e arbitrários do marxismo, ainda que sedutor exatamente por conta de Platão ter aprendido a arte da sedução com Sócrates?

Penso que Badiou teria de ser mais explícito no sentido de pôr a sua visão política, a do esquema capitalismo-democracia, como uma teoria ad hoc ao seu platonismo (ou vice versa). Mas não achei isso no texto. Não vejo o texto assumindo essa condição. Vejo, mais uma vez, um tipo de realismo romanticizado em que o confronto entre real e aparente é outro nome para capitalismo-ideologia liberal democrática. Mais do mesmo, diríamos.

Poderíamos salvar Badiou dizendo que o sistema ad hoc está já pressuposto. Que só por escolher a forma de falar por exemplos, e não dedutivamente como em um tratado filosófico conceitual, ou indutivamente como em uma tese acadêmica científica, já implicaria na escolha aleatória, pessoal, e nesse sentido ele teria optado pelo estilo ensaístico, completamente válido. Assim, a dualidade capitalismo-democracia como sendo o resultado da aplicação da dualidade real-aparente viria por uma escolha entre outras, a escolha do autor – legítima por conta do autor estar interessado em encontrar uma aplicação para exemplos de esquemas.

Claro! Não se pode proibir um comprador de quadros que passe numa loja de moldura para escolher aquela que ele melhor gosta, aquela que ele quer que adorne o quadro na parede de sua casa. Mas, ainda assim, o visitante da casa pode sim, com igual legitimidade, dizer: “olha, esse quadro merecia uma moldura diferente, e vice versa”.

© Paulo Ghiraldelli Jr, 2017

* Trata-se de faire semblant, que o tradutor optou por “semblante”. Faire semblant é fingir, aparentar, fazer de conta.

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