Um dos mais belos textos que conheço sobre o filósofo Santo Agostinho está em Temperamentos filosóficos, de Peter Sloterdijk. Neste, ele registra que o caminho do Bispo de Hipona se fez no traçado da “inquisição fundamental contra o amor-próprio do homem”. Sloterdijk faz menção a vários autores que teriam dado sequência ao feito de Agostinho, indo de Fichte a Derrida e passando por Dostoiévski e Freud. Seriam todos figuras da “história da inquisição anti-narcisista lançada por Santo Agostinho e os Padres Católicos”. Mas acrescenta: “a modernidade descobriu que o homem pode desagradar a si próprio mesmo sem Deus”. “Verdade e depressão desdobram-se numa correlação que se pode pensar como um desmedido sadismo sem Deus e uma desmedida graça sem Deus”.
De fato, nós modernos, que vivemos segundo a regra verdadeira do “Deus está morto”, que Nietzsche acertadamente lembrou, sabemos bem que podemos entrar em profunda depressão no contato com a verdade. Sabemos também que podemos nos salvar disso, por meio de uma graça que, obviamente, no quadro do pensamento vigente, vem de qualquer lugar, menos de Deus. Não precisamos mais de Agostinho, no seu estilo, para denunciarmos a nós mesmos como narcisistas, menos ainda da sua ideia de que Deus pode nos dar, mesmo que de modo perversamente seletivo, a graça e a salvação. Mas todo esse nosso saber atual não nos permite dispensar a filosofia do Bispo de Hipona, ainda que o catecismo católico, bastante baseado nele, se revele como saber necessário que é efetivamente apenas relíquia histórica. No trabalho de se tornar o pioneiro da cruzada anti-narcisista, Agostinho inventou “o homem interior”, um dos pilares básicos da construção chamada subjetividade ocidental moderna. Conhecer a origem de nossa conversa em favor do anti-narcismo não é possível sem ler Agostinho.
Por que e como agiu assim Agostinho, nessa cruzada? Quais suas motivações e qual o seu traçado?
Sua motivação para se por no âmbito do anti-narcisismo, sem dúvida veio da sua leitura de Paulo, na condenação deste à carne. Sob esse crivo, Agostinho leu o Gênesis e ficou profundamente impressionado com a questão do pecado original. Foi ele quem tentou a primeira e mais profunda explicação do drama de Adão e Eva e a perda do Paraíso. É de sua responsabilidade a ideia de sexualizar o pecado original segundo uma narrativa lógica, à maneira dos filósofos profissionais, seus mestres gregos. A partir daí, vendo o homem como quem estaria marcado pelo pecado original para sempre, Agostinho não conseguiu encontrar outra saída senão apelar para uma invenção quase sua, a da expiação através da confissão, a busca de Deus dentro de si por meio de uma conversa franca – a transposição da parresia pública dos filósofos gregos para o âmbito da intimidade. Os estoicos haviam dado a chave para esse tipo de prestação de contas. Agostinho adaptou e avançou uma tal prática, então na presença da Verdade, ou seja, Deus. Agostinho fundou a subjetividade moderna, cristã, a “interioridade”, e abaulou-a não só com a culpa, mas também com o próprio Deus.
Agostinho jamais pensou, como Platão, em se deparar com o Bem e se redimir a partir de lembranças do lugar bem-aventurado, a vida vivida algum dia no campo ontológico das Formas. Ele pensou em apostar que, num trabalho de renúncia de si para poder encontrar Deus, se fosse, por desejo deste, merecedor da Graça, então talvez ele pudesse ser recebido melhor preparado – mutatis mutandis uma aposta pascaliana. Agostinho tornou trágico aquilo que era, em Platão, uma caminho completamente alegre. Afinal, em Platão o Bem banharia de fato o filósofo autêntico, sendo este o fruto de uma educação baseada no treinamento em matemáticas a fim de afastar o sensível. Mas, para Agostinho, Deus não iluminaria o filósofo cristão por meio de qualquer educação, e sim pela sua própria decisão divina. Viver uma vida negando o sensível e, no caso, a luxúria, ligada ao pecado original, nada era, para Agostinho, que uma aposta de que isso poderia, talvez, lhe dar algum conforto fora da Graça, e talvez até pudesse servir para alguma coisa caso a Graça lhe fosse concedida. Na pior das hipóteses, uma tentativa sincera de viver catando aqui e ali indícios para se afastar de comprometimento com mais pecados.
Como Agostinho sexualizou o pecado original? E de que modo ele lidou com isso?
Para Agostinho, o pecado original era uma falta vinda da desobediência. Adão e Eva comeram do “fruto da árvore do saber a respeito do bem e do mal”, com isso, adquiriram a nossa condição humana, de atormentados, e imediatamente fizeram cessar as condições paradisíacas. Acharam que o saber sobre o bem e o mal seria algo maior do que o bem no qual viviam, junto da relação imediata com Deus, ou seja, com as regras de Deus na vida bela do Paraíso. O que ganharam, de modo imediato, foi arcarem, em sua própria carne, com a horrível sensação de desobediência, exatamente aquela sensação observada por Deus quando eles, suas criaturas, o desobedeceram. As manifestações involuntárias do corpo diante do desejo, as manifestações da luxúria, nada seriam senão essa forma de fazer os então mortais sentirem vergonha, e passar pela experiência de Deus quando este viu seus próprios membros agirem em desconformidade com o que queria. O castigo pelo pecado seria a ereção e correlatos, o impulso involuntário para a luxúria, a busca de um êxtase que, acontecendo, daria a impressão de satisfação e felicidade, mas que logo voltaria a se tornar apenas desejo, empurrando o homem para novo ato involuntário, fazendo-o entregar-se ao vício de cultuar essa busca de amor-próprio advindo do gozo sexual. O homem viciado no narcisismo, alimentado pela luxúria, ganharia assim a prática ao pecado, recebendo novamente a punição deste em seguida, ao se ver solitário e vítima novamente do movimento involuntário de seus membros.
Essa visão sexualizada do Mal, do pecado, é a que está em A cidade de Deus. Mas não é a única criada por Agostinho. No episódio do roubo de peras, posto nas Confissões, a inquisição antinarcisista se mostra sob outra roupagem, sem apelo sexual.
Nas Confissões, Agostinho lembra que, na adolescência, ele e amigos roubam peras não por outra coisa que o prazer do roubo. Mas que prazer era aquele? O prazer ligado à satisfação da vontade. Qual? A “vontade de fazer o mal por passatempo e brinquedo, apetite do dano alheio sem proveito algum e sem desejo de vingança! Só porque sentimos vergonha de não ser sem-vergonha quando ouvimos; ‘Vamos! Façamos!’.” A análise desse episódio leva Agostinho a concluir que um tal ato não vinha de algo completamente alheio a Deus, pois o que se queria ali era, de certo modo, imitar Deus. O intuito era exercer a vontade contra qualquer coisa proibida, rompendo a proibição. Esse seria o prazer do pecado, buscar em pequenas coisas exercer a vontade de modo não a se saciar, pois o sentir-se pleno e definitivamente satisfeito ocorreria se a vontade estivesse em direção a grandes coisas, as coisas perenes, divinas. Mas, buscar saciar-se no passageiro levaria, sempre, a querer mais e mais, gerando o vício. Eis aí então o pecado como a incapacidade de voltar-se senão para si mesmo, em uma roda que gira em falso, pondo o orgulho pessoal, de ter realizado uma façanha, acima de tudo, inclusive a despeito daquele algo que é obtido na façanha, coisa fácil uma vez que o obtido pouco importa. Eis que na busca de satisfazer uma vontade que não está voltada senão para a sua própria satisfação momentânea, o que se ganha não é a liberdade, como na comunhão com Deus, mas a escravidão, pois a saciedade é momentânea, o vazio se faz sentir, e logo a vontade cobra novo ato de igual medida, apresentando-se então como mero desejo.
É também nesse sentido que podemos entender a observação de Alain de Libera dizendo que a subjetividade moderna emerge com Agostinho não positivamente, mas negativamente. Agostinho diz como certa individualidade que se pensa autossuficiente se põe como um interior aparentemente pleno, e, desse modo, realiza-se como algo que não deveria ocorrer, pois isso é o pecado. O pecado é o amor-próprio em um sentido específico. Exerce-se não por uma ação ou as suas consequências. Não vem pelo roubo da pera ou pelo prejuízo causado ao proprietário, mas pela intenção que se liga à satisfação do amor-próprio mostrado em termos de egotismo, ou então, digamos, narcisismo. Assim, os atos são neutros, possuem um número enorme de consequências, mas se tornam malignos se o objeto deles é a satisfação do orgulho, no sentido da satisfação virada para o próprio eu como um eu que trocou o obtido pelo feito pelos aplausos obtidos no feito. Pois esses desejos, o de romper com barreiras para vangloriar-se, são falsos e insaciáveis. Nenhum roubo de peras ou de qualquer outra coisa iria preencher duradouramente um eu que precisa alimentar seu orgulho ao romper a lei e ser então aplaudido. São esses desejos imaginados, falsos, que não possuem a qualidade dos objetos que uma boa vontade procuraria. Rodam no vazio. São insaciáveis e, nesse sentido, são exemplificados também pelas compulsões como as da luxúria. Há aí na busca de se exercer a vontade livremente, como o que Deus faz, a real consequência: a infelicidade da escravidão e o distanciar-se de Deus; o ver-se preso pelo impulso que cobra saciedade a todo o momento. Voltar-se para si e encontrar os objetos perenes, como só Deus pode mostrar (Agostinho lembra que até a vingança de Deus é uma Vingança, enquanto a vingança dos homens se torna mais um ato de egotismo), é uma boa tarefa, mas ao voltar-se para si de modo descuidado pode-se estar apenas alimentando a soberba, a arrogância de se achar quebrador de barreiras. Há uma tênue diferença, portanto, entre a virtude da humildade cristã, que é uma doutrina, e a humildade como ideologia.
A humildade como doutrina se põe contra o orgulho de realização pessoal por meio de vícios. Esse tipo de realização pessoal, falsa, se consegue por meio do exercício que busca falar amém para uma vontade que quer antes de tudo a sua satisfação pelo espetáculo da façanha, como que guiada pelo egotismo, e não o obtido pelo resultado da façanha. A humildade como ideologia, por sua vez, é cobrada como um abaixar de cabeça, como uma servidão, um instrumento de dominação. Termina por proibir todo e qualquer orgulho, mesmo aquele legítimo, que surge pelo resultado próprio da façanha. Assim, um estudante que estuda para aprender e de fato aprende, e não estuda visando aplauso algum ou qualquer sensação de se achar superior, é rebaixado porque em algum momento ficou feliz pelo seu feito. É posto para cultivar uma humildade que é a sua anulação. Esse tipo de humildade não é doutrina, é ideologia.
Considerando essas questões, podemos ver que voltar-se para o interior, como Agostinho aconselha de modo a se buscar Deus, ou seja, os elementos perfeitos e perenes, para os quais a vontade deveria se colocar como uma vontade de boa vontade, é o correto. O erro é voltar-se para o interior no sentido de alimentar o individualismo associado ao egotismo, o individualismo que quer massacrar rapidamente o “dois em um” que cada um de nós é, que está ali e que pode ser buscado. O “dois em um” conflituoso da vontade dupla dá alimento para o “dois em um” de uma vontade que provoca a boa vontade, a ligação entre o eu e Deus. O “dois em um” massacrado, que é a vontade de má vontade, leva à busca do isolamento, a independência ou, melhor dizendo, ao que é falso. Pois a independência solitária não existe. O amor próprio egotista é um falso patamar de desenvolvimento, tanto é que a vontade logo se manifesta intencionando fazer mais coisas, reproduzir um ato de quebrar barreiras em função do auto-engrandecimento, do orgulho sem objeto, do mostrar-se. Agostinho lembra bem que se estivesse sozinho não roubaria as peras, que a companhia em forma de plateia o ajudou a fazer o que fez; que a companhia alimentava sua falsa impressão de estar sendo livre ao fazer algo proibido. Ter a clara consciência de ser errado não o impediu de fazer o erro, muito pelo contrário, saber que o erro é um erro é que o colocava na direção de executá-lo. O pecado é exatamente isso. O agente acrático, ou seja, o homem de vontade fraca – inconcebível por Sócrates – é explicado em Agostinho não só como possível, mas como o encontrável em cada esquina.
Como então, em Agostinho, se evita o pecado?
Por uma decisão da vontade em ser uma boa vontade, e aí entra algo que tem a ver com a Graça. Deus coloca indícios que podem ser utilizados para se escapar do vício. Mas são indícios, não ordens. Alguns estão cegos demais com as aventuras repostas de vício em vício e não se desviam disso, outros podem por algum momento – a Graça – tropeçar e parar, perguntando-se sobre a razão de nunca estarem satisfeitos com o ego inchado obtido a cada maldade realizada. Estes, quebram a cadeia circular do vício.
Assim, se em Platão, no Alcibíades I, há um movimento em busca de um “conhece-te a ti mesmo”, este não implica senão em encontrar a razão divina como parte da alma humana, e então se ver como pertencente à harmonia do universo. Na terminologia moderna diríamos: ao adentrar o subjetivo encontra-se o objetivo. Ora, os estoicos pegaram outro caminho. Não se encontra nenhuma divindade em um retorno a si mesmo, diz Epíteto; o que se faz de correto, então, é a imitação dos deuses, na sua independência. Agostinho, por sua vez, pede uma volta para o interior em busca do divino, e assim, à primeira vista, parece ter a ver com um neoplatonismo, mas em seguida mostra que essa volta para si é uma volta no sentido de evitar uma saída para o cosmos ou uma fixação no próprio eu; trata-se de uma interiorização para querer o bem querer, ou seja, querer algo que é da ordem das virtudes, da excelência, do que é perene e belo, Deus, e não o cultivo do ego inflado pelo aplauso alheio. Todo o problema da interioridade em Agostinho é, portanto, o de fugir do aplauso alheio, da pseudossatisfação da vontade. Uma vez girando em falso, a roda da volição mostra-se compactuada com a inflação do ego, o orgulho vazio, a emergência de certa arrogância.
Um episódio interessante do clima medieval inaugurado por Agostinho revela-se no diálogo de O Nome da Rosa, tanto no livro de Umberto Eco quanto no filme correlato. O sacerdote que faz a investigação das mortes ocorridas no convento, em determinado momento, é acusado por seus rivais como quem está muito mais preocupado em provar sua tese como certa, mas antes de tudo por orgulho, para satisfazer seu ego, e não para efetivamente resolver o caso para o bem do Convento. Apesar dessa acusação ser usada maldosamente contra ele, o sacerdote é tocado por ela, pois sabia muito bem que ele poderia estar sim chafurdando nesse pecado e, então, entrando pelo vício. É fácil se desencaminhar do objeto e caminhar para um objeto falso, o de alimentar a glória pessoal no sentido de mostrar-se como quem tudo consegue.
Apesar da morte de Deus e do desaparecimento do pecado original e até mesmo de todo e qualquer pecado no mundo contemporâneo, a luta contra o orgulho, certa ou errada, sadomasoquista ou não, não se esvaiu, não minguou. A cruzada do anti-narcisismo, que nasceu em conjunto com a noção de subjetividade moderna, nos moldes de Agostinho, ainda é vigente, com todos os seus prós e contras.
© Paulo Ghiraldelli, 2017