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Mãe, capitalismo e a burrice como cicatriz

 

O homem é o animal que tem mãe.

Quando leio Sloterdijk, penso que essa minha frase acima consegue expressar o centro de sua filosofia atual. O homem é o único animal que tem mãe, não só progenitora. Por isso o homem é o homem. Quando olhamos a antropologia fantástica de Sloterdijk, algo que casa dados científicos, conjecturas ficcionais e imaginação filosófica da melhor estirpe, não conseguimos não nos impressionar.

A progenitora hominídia (ou pré-hominídia?) está protegida por um acidente geográfico qualquer. Um momento raro e longo sem predadores e com comida abundante. Diferentemente de todas as outras vezes, ela pode se interessar pelos rebentos. Nota até mesmo o prematuro. Então, cuida dele em especial. Até que é bonitinho! Sem pelos! Daí para diante, a evolução joga suas cartas, elaborando a mutabilidade genética que Darwin explicou antes mesmo da sua cientificidade que conhecemos hoje, mas por conta de um passo inicial … estético! Eis que surge o fenômeno que só nós humanos produzimos: neotenia. Trata-se da incorporação da juventude do indivíduo à espécie. E nós então nascemos jovens e nunca amadurecemos. Somos a única espécie que nasce de um aborto, quase dois anos antes do que seria o correto, segundo um amadurecimento que nos faria dispensar a mãe (como fazem os outros animais). E nunca de fato amadurecemos. Somos a única espécie cujos indivíduos nunca param de amadurecer. Se não há o mimo inicial (o agrado dispensável, mas que conosco é essencial) e os mimos da vida, não realizamos nosso potencial. Somos seres do mimo – eternamente. Tivemos mãe para sermos homens, no campo da filogênese (a história da espécie), e necessitamos de mães para sairmos da condição da vida feliz fetal, de puro mimo, para buscarmos mimos construídos, isso no campo da ontogênese (história do indivíduo). Eis a filosofia do nascimento e do mimo de Peter Sloterdijk. Um elogio à mãe.

Enquanto Sloterdijk produziu nos anos noventa e na entrada do novo século essa filosofia do nascimento e da mãe, em três volumes massudos de Esferas e outras publicações, o ativista e filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, do pós-operaísmo italiano, encontrou a necessidade da mãe por outras vias, e disse coisas também ditas por Sloterdijk.

Em seu livro Asfixia, Berardi relaciona corpo e linguagem tendo por elemento mediador a mãe – o corpo da mãe. Quando a mãe diz (Sloterdijk conta: ainda com o útero cheio) “água” eu sei que é água porque ela me diz com seu corpo, com seu som, e aponta para o referente ao referido. Confio no seu corpo (Slotertijk conta: trata-se de uma boa nova, dada por que alimenta e provoca o mimo, a confiança). Nesse sentido, tudo vai bem! Mas, se Sloterdijk está preocupado com a origem da solidariedade e da confiança, que ele atribui como sendo o que é o centro do pensamento de esquerda e, portanto, do seu pensamento, Berardi pega essa via de modo a encontrar outros elementos. Berardi quer saber sobre os momentos em que a solidariedade se quebra, quando a confiança não se estabelece. Sloterdijk busca entender o sucesso da esquerda, Berardi quer saber sobre o que pode ser seu fracasso.

Desse modo, Berardi escreve (a citação é longa, mas, por favor, não pule):

“A máquina tecnolinguística oferece linguagem às pessoas, mas também toma da nova geração os lugares que até então eram ocupados por seres humanos. Em 1977, a antropóloga americana Rose Kohn Goldsen escreveu as seguintes palavras em The Show and Tell Machine [A máquina de mostrar e contar]: “Nós estamos criando uma nova geração de seres humanos que aprenderá mais palavras com uma máquina do que com suas mães”. Essa geração está aqui. A primeira geração que aprendeu mais palavras com uma máquina do que com suas mães tem problemas com a relação entre palavras e corpo, entre palavras e afetos. A separação entre o aprendizado da linguagem e o corpo da mãe e entre o aprendizado da linguagem e o corpo em geral está mudando a linguagem em si mesma e em relação ao corpo. Até onde sabemos, o acesso à linguagem sempre foi mediado, ao longo da história humana, pela confiança no corpo da mãe. A relação entre significante e significado sempre foi garantida pelo corpo materno e, portanto, pelo corpo de um outro. Eu sei que “água” é água (na verdade, como eu aprendi com a minha mãe a falar italiano, sei que “acqua” é acqua) porque minha mãe, e não uma máquina, me disse “isto é acqua”. Eu sei que o significante aponta para o significado. Minha mãe me disse acqua, e eu confio no corpo dela. O que acontece com essa relação entre linguagem e desejo a partir do momento em que o acesso à linguagem é desconectado do corpo? Quando a relação entre significante e significado deixa de ser garantida pela presença do corpo, começa a haver uma perturbação na minha relação afetiva com o mundo. Minha relação com ele se torna funcional, operacional – mais rápida, se preferirem, porém precária. Até o ponto da desconexão entre a linguagem e o corpo.” (Berardi, Franco. Asfixia – capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem (p. 67). Ubu Editora. Edição do Kindle.)

A tese do filósofo italiano é a de que o problema de nossos tempos está, em boa medida, no êxodo da mãe, por diversos motivos. E na perda da relação corpo-criança. A substituição da mãe, em todos os lares, da classe média ao lar pobre, pela sua integração nas grande rede cujo sentido inicial era o comunismo do saber, e que se tornou o campo da tentativa de privatização desse saber pelo capital. A geração que chega agora ao comando social já é toda ela educada pela TV e, de modo a mostrar efeitos que eu avalio como assustadores, pela Internet. É uma geração que perdeu o mimo (e usamos termos de Sloterdijk), e é uma geração que perdeu a complexidade do sentido, e por isso não vê as coisas com sentido (se usamos termos de Berardi). Pois participa de algo chamado inflação de signos concomitantemente à perda do sentido que se dá em uma infosfera carregada e hiperacelerada.

Mas, até esse ponto, outros já disseram tudo isso. E as próprias referências bibliográficas de Berardi são esclarecedoras. Mas, o apoio de uma delas, um texto curto do professor Frédéric Kaplan, da Escola Politécnica Federal de Lausanne (França), é essencial para ele. Essencial para todos nós, se quisermos entender o problema internamente. (Leia aqui: Quando as palavras valem ouro). Ao explicar o Google, Kaplan mostra o centro temático que Berardi usa para a sua tese. As palavras do modo que o Google as procura e as corrige para nós é a moeda valiosa, é o dinheiro, o ouro novo. Perdemos a referência quando Nixon tirou da jogada o padrão ouro do dinheiro mundial, o Dólar, e com isso criou um mundo sem território, incerto, aberto à desregulamentação que fez o capitalismo gerar dinheiro a partir de dinheiro, sem passar pela produção de coisas. Creio que temos que observar como que esses mecanismos de partenogênese também se efetivaram na linguagem, possibilitando a ela gerar palavras a partir de palavras, sem âncoras. A indexação do Google opera dessa maneira.

O resultado da desreferencialização no campo da linguagem fez a infosfera ganhar uma proliferação de signos por conta da perda de sentido vinda da perda da função da referência. Sendo assim, a infosfera impediu o pensamento, que é mais lento, e também o incentivou a aderir às drogas, para ter seu ritmo ampliado. Isso porque a inflação dos signos na infosfera se fez exatamente na busca louca de forjar sentido o que já não tinha referência e, então, sentido. Uma forja infrutífera. Uma geração inteira educada por máquinas e não pelo corpo da mãe, na loucura da inflação de signos e, portanto, de velocidade, pode sim ter sido atingida em seus mecanismos de produção de afetos, de solidariedade, de responsabilidade pela dor do outro e, mais ainda, atingida em sua capacidade de pensar.

Mundo financeiro e mundo da linguagem, eu digo, colonizam-se um ao outro. Achar palavras numa página e oferecer produtos e caminhos, como o Google faz, abre seus lucros estrondosos. Devolver a linguagem do usuário de modo que ele próprio sinta que escreve corretamente (mesmo que não!) é o segundo passo do Google, que cria a filiação e a intimidade com seus membros de plataforma. Nós somos essas pessoas, o homem cifrado, isto é, com senha, para lembrar de como Deleuze nos chamou três anos antes da Internet vingar. Ter uma senha e, com isso, ter uma identidade, nos permite sermos usuários de uma maquinaria cuja forma de atividade logo se transforma em modus operandi de nosso cérebro. Na fusão entre linguagem de máquina e que, em seu binarismo forma (e agora deforma) nossa linguagem, somos transformados em ciborgs mentais (ou mais que isso), mas talvez sem os superpoderes que se espera de um bicho desses. E se a velocidade é o central para o funcionamento do dinheiro que gera dinheiro no campo de jogo da aplicação financeira, também ela só existe nos termos que existe por conta da digitalização da sociedade, e ela própria se torna conteúdo e forma da digitalização, e pelo modo pelo qual a infosfera ganha a sua hiperacelaração.

Berardi cita mais outros autores, no contexto da sua explicação sobre a abstração criada pelo capitalismo, e anunciada em seus primórdios por Marx (de novo, peço que não pule!):

Em seu livro Data Trash [Lixo informacional], Arthur Kroker e Michael A. Weinstein escrevem que, no campo da aceleração digital, mais informação significa menos significado. Na esfera da economia digital, quanto mais rápido uma informação circula, mais rápida é a acumulação de valor. Mas o significado desacelera esse processo, já que ele precisa de tempo para ser produzido e para ser elaborado e entendido. Então a aceleração do fluxo de informações traz implícita a eliminação do significado. Na esfera da economia financeirizada, a aceleração da circulação e da valorização financeiras traz implícita a eliminação do mundo real. Quanto mais se destroem coisas físicas, recursos físicos e corpos, mais se acelera a circulação de fluxos financeiros. Em grego, parthenos significa “virgem”. Jesus Cristo foi criado por partenogênese. A Virgem Maria deu à luz seu filho sem nenhum engajamento na realidade do sexo. A economia financeirizada (assim como a arte conceitual) é um processo partenogênico. Na verdade, a monetarização e a financeirização da economia representam a partenogenização da criação de valor. O valor não surge da relação física entre trabalho e mercadoria, mas sim da autorreplicação da força partenogênica das finanças. (Berardi, Franco. Asfixia – capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem (pp. 69-70). Ubu Editora. Edição do Kindle.)

Eu completaria: Talvez a personalidade de Jesus, às vezes irritada demais com seus parceiros apóstolos, advenha do fato dele ter vindo de partenogênese, mas, certamente, sua confiança na redenção humana veio do fato dele ter nascido de Maria, e ter ouvido o corpo dela. Jesus tinha um celular, claro, pois ele falava diretamente com seu pai celestial, através da oração chamada “Pai Nosso”, a única, biblicamente, teria sido ensinada por ele próprio. O celular de Jesus, com sua conversa agora repetida pelos “fiéis” sem qualquer emoção, está nas contas dos terços e depois nas rádios, já esperando a Internet, para ser integrado ao mundo da velocidade e também ele não fazer mais sentido algum para o orador. Jesus não fazia ideia de que isso poderia ocorrer.

Com uma última citação em destaque, que escolho parcimoniosamente (prometo, e volto a dizer, não pule!), faço Berardi completar o raciocínio que enfatizo aqui:

“Em L’ordine simbolico della madre [A ordem simbólica da mãe], Luisa Muraro enfatiza a importância do corpo da mãe na formação da linguagem. Se eu confio no significado das palavras, é porque a relação entre o significante e o significado foi inicialmente garantida pela autoridade afetiva da minha mãe. Na linguagem, o significado não depende apenas da submissão à sintaxe e da interpretação semântica. Ele depende da confiança, da afeição. Na esfera do capitalismo neoliberal e da captura das energias nervosa e física do feminino pelo maquinário de exploração global, as mães são cada vez menos a fonte da linguagem: elas foram separadas dos corpos das crianças pelo trabalho assalariado, pelas redes de mobilização de suas energias mentais e também pela globalização do mercado afetivo. Milhões de mulheres deixam suas crianças em Manila e em Nairóbi e vão para Nova York ou para Londres para tomar conta dos filhos de trabalhadoras cognitivas que deixam suas crianças em casa e vão para escritórios. Mães são substituídas por máquinas linguísticas que estão constantemente mostrando e contando. A geração conectiva aprende a linguagem em uma estrutura em que as relações entre esse aprendizado e o corpo afetivo tendem a ser cada vez menos relevantes. Quais são os efeitos de longo prazo dessa separação entre a linguagem e o corpo da mãe? Quais são os efeitos de longo prazo da automação do aprendizado da linguagem? Não tenho respostas definitivas a essas questões, e ainda não é possível extrair conclusões finais sobre a consciência que essa primeira geração conectiva que agora está entrando em cena tem de si. Os movimentos sociais em erupção na Europa e no mundo árabe podem ser os primeiros vislumbres de um processo de longo prazo de auto-organização ao redor do mundo dessa geração precária, conectiva. Quem pode saber o que o futuro nos reserva?” (Berardi, Franco. Asfixia – capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem (pp. 70-71). Ubu Editora. Edição do Kindle.)

Berardi deixa em aberto a questão sobre o quanto podemos dizer que a juventude que se faz adulta hoje, vai ou não conseguir governar o mundo. Deixa em aberto a questão de se vai haver “um mundo”. Um grande gesto da boa filosofia – é meu elogio a Berardi. Todavia, pelo que temos visto, nós que pertencemos às gerações que viveram sem Internet e que, depois, com ela, nos adaptamos mais do que o esperado (Berardi é de uma geração dez anos a mais que a minha, equivale a de meus professores, aliás, na mesma equivalência de Sloterdijk), não conseguimos não notar o dispersar mental dos jovens, as patologias do déficit de atenção, a evolução das drogas não recreativas que servem ao trabalho, o próprio ressurgimento da histeria como patologia etc. Os youtubers que não conseguem critérios, a não ser exteriores (dar o like!) para escolher o que falar são frutos disso tudo. A burrice lhes caiu como Theodor Adorno, filósofo da Escola de Frankfurt, a chamou: uma cicatriz. Ela marca suas bochechas às animalescas.

Para escapar disso, em outras áreas, por exemplo, no plano governamental, então tentamos criar os “protocolos e procedimentos” para tudo e todos, disponíveis já na rede, de modo a diminuir a velocidade, a aleatoriedade de possibilidades e, enfim, a completa perda de sentido de tudo por conta da irreferencialidade que gera a inflação de signos. E eis que vemos que, então, isso só aumenta os signos e diminui novamente os sentidos.

Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo 32/02/2021