Os sociólogos e os antropólogos positivistas admitem que trabalham com modelos. Durkheim disse que era para “tratar o fato social como coisa”. Ou seja, era para construir social e mentalmente o fato social como se ele fosse um fato da natureza. O correto, para Durkheim, era imitar na sociologia o que os cientistas da natureza, especialmente os físicos, haviam começado a fazer a partir de Galileu e Newton. O professor de sociologia abestalhado não sabe disso, e apresenta tudo normativamente e diz que está falando da “realidade”, sem mais. Marxistas perderam o prestígio por conta de se colocarem assim, isto é , como abestalhados. Marx jamais fez isso. Mas adversários desonestos dele se aproveitaram bem disso, da burrice dos marxistas de carteirinha.
Mas entre os profissionais acadêmicos que lidam com o crescimento mais direto do saber teórico (excluo portanto, principalmente, os médicos, engenheiros e advogados – “profissionais liberais” que saem da faculdade para o trabalho burguês, sem refletir sobre suas disciplinas), os economistas são os que menos aprenderam a respeito da tal “realidade”. Eles ainda estão funcionando segundo uma conversa normativa, dizem o que ocorre e o que vai ocorrer como se as coisas não passassem por nenhuma mediação. Recusam peremptoriamente em aceitar a humildade intelectual que Wittgenstein solicitava, quando ele aventou a ideia de que nossos vocabulários todos fazem o nosso mundo, e isso no sentido antes do uso do que da representação das coisas.
Por isso mesmo, os economistas podem gerar tipos dotados apenas de cerebelo, como Paulo Guedes. Com bochechas de buldogue velho, ele se lambuza na frente do reacionário e baba ovo de rico William Waack, dizendo frases do tipo: Marx errou ao se fixar na teoria do valor-trabalho. Guedes foi para Chicago com bolsa de estudos pública, ou seja, paga por nós, mas não conseguiu aprender muito. Sua cabecinha tomava o que lia e ouvia como “realidade”. Disseram para ele, em Chicago, que a teoria do valor trabalho era “não operativa”, e que nem precisava estudá-la, e que o bom era se fiar no novo conhecimento hegemônico, o da “teoria marginalista”. Aliás, em algumas faculdades, nem mais falam em “teoria”, apenas apresentam a economia como sendo o utilitarismo da posição dos marginalistas e ponto final – forma-se um economista para ele “trabalhar no mercado”. Não raro aparece um tipo desses na TV para falar a frase que o repórter, ao apresentá-lo, já falou.
Atualmente, a banho relativista melhorou muito as coisas, por um lado. A onda conhecida como “pós-modernismo”, desde os anos oitenta, reintroduziu o modo de Nietzsche e dos pragmatistas americanos de conversar. Tirando os relativistas banais, que apenas sabem dizer “cada cabeça uma sentença” e não entendem nada de epistemologia, os bons filósofos acabaram re-ensinando os intelectuais em geral de que até mesmo o tal “sexo biológico” é um modelo social-linguístico, forjado pelo senso comum e pela ciência. Nossa linguagem constrói mundos e, portanto, mundos comuns (Bruno Latour) são necessários para que possamos acreditar que ao dizer a palavra “realidade” estamos falando da mesma coisa.
Guedes e muitos economistas que se pensam melhor que ele, mas que são do PSDB e, portanto, em princípio não podem ser melhor que ninguém, não conseguem perceber que a teoria do valor-trabalho de Marx não é a do Ricardo, e que todas as teorias são modelos que estão em disputa científica porque antes de tudo estão em disputa política e até mesmo cultural.
Os bons analistas da história da economia mostram que foi a emergência da crítica socialista que fez com que a burguesia, com seus professores, dessem prestígio para a teoria marginalista em detrimento da teoria marginalista. Isso ocorreu no final do século XIX. Mas há intelectuais ainda melhores, que buscam uma visão ainda mais ampla. Penso que uma visão mais ampla é a que, ao modo de Hegel, explica essa troca a partir da noção de “espírito de época”. A narrativa hegeliana me dá mais asas que as outras, nesse caso.
Quando eu mesmo coloco minha colher no bolo, eu tendo a dizer mexer o açuçar assim: o capitalismo trouxe mais tempo livre para todos, em especial após a II Guerra mundial, e isso pela pressão dos trabalhadores e pela reação da burguesia no sentido de colocar as máquinas no trabalho, ainda o maquinário da chamada linha de produção, e não o robô. Tivemos o regime fordista. E no plano político o estado de bem estar gerenciado pela social-democracia. O tempo livre proporcionou uma vida mais leve. A vida desonerada veio a ser um ideal. A social-democracia passou então a concordar com os liberais: a liberdade é tão boa ou até melhor que a igualdade. Sejamos livres. Livres do casamento e livres de impostos. Livres até de leis, diria e diz Bolsonaro junto com Guedes. Todos fizemos eco, com boa ou má intenção, ao “é proibido proibir” de Maio de 68. Estamos sob esse vagalhão espiritual. Uns na linha de nos libertarmos da escravidão do mercado, outros na linha de se libertar de tudo que imagina opressor para cair de nádegas no mercado. As ilusões variam segundo a cor do cabelo, hoje em dia. Ou dizendo com Sloterdijk: todos somos livres para escolher a melhor opressão.
Nessa situação, é claro que a vida sob o trabalho, como já falaram tantos nos anos 60, é a vida alienante. Só vale a pena trabalhar se o trabalho for o lazer e se tudo for como o sexo atual, que na conta de Paul Preciado, virou apenas excitação e des-excitação na base de próteses e bioquímica. Peter Sloterdijk e Lipovetsky, cada um a sua maneira, falaram dessa sociedade do mimo, da desoneração, da vida leve, iniciada com a modernidade e agora chegada aos píncaros. Mesmo sob a Covid, não estamos querendo de modo algum adotar a vida pesada e não vamos adotá-la. A vida pesada são para hipócritas que seguem Mussolini. Ele advogava a vida sob o trabalho árduo. Nossa direita faz isso, mas deixa tal coisa como moral para os pobres, não para todos. Nessa situação, é claro que a teoria econômica do marginalistas tem espaço para continuar sua hegemonia. Ela se encaixa bem no mundo em que todos pedem liberdade individual de modo abstrato, sem qualificações.
Exponho as duas teorias citadas, e então comento abaixo.
Resumindo ao máximo, a teoria do valor trabalho vê o valor como oriundo do trabalho embutido na produção. O homem trabalhador gera valor e, uma vez esse valor se consubstanciando na matéria, gera riqueza. Os preços das coisas no mercado se alteram pela lei da oferta e da procura, mas não é essa lei que está na base substancial do preço, e sim o trabalho. O preço é um número que gravita em torno do valor. Temos aí uma teoria dita objetiva.
Também em máximo resumo: a teoria marginalista vem do utilitarismo. Algo tem valor no mercado segundo a lei da oferta e procura dos indivíduos. Eles são seres racionais que sabem escolher e, então, vão escolher o que não possuem, deixando o que possuem de lado, buscando maximizar o que lhes é útil e portanto procurando a felicidade. Nessa hora, são os preços no mercado, fixados pela relação com a escassez (que pode ser provocada por monopólios, mas aí os marginalistas não sabem o que fazer!), que nos dizem o que tem ou não tem valor. A teoria ganha um tom fortemente subjetivo.
Uma teoria subjetiva está em acordo com a crescente subjetivação do mundo, uma característica da modernidade que começou no Ocidente mais fortemente com o cristianismo – explico bem isso no livro Narrativas contemporâneas (São Paulo: Cefa Editorial, 2021). Também está em acordo com o capitalismo que mima todos nós que podemos estar na sua bolha de prosperidade, ou seja, nos países ricos ou nas classes médias mais abastadas de vários países pobres. Essa desoneração que fez o trabalho se adaptar bem às novas regras de fusão e confusão dele com o lazer (trabalhamos no celular 24 horas por dia, somos consumidores-produtores), que fez a juventude se fundir com a idade adulta, obviamente favoreceu em muito a hegemonia de uma teoria do valor que se distancia do trabalho, do fardo, da fábrica, da oneração. O neoliberal fala em esforço individual, mas não em trabalho. Ele vê o esforço com o esperteza de poder apertar dígitos no capitalismo de jogatina. Ele se imagina um investidor, sendo na verdade um aplicador. Ele não investe em nada, em nada que seja realmente dinheiro para a produção de riquezas.
Talvez aqui tenhamos que lembrar Toni Negri, que, seguindo Deleuze (no célebre texto “Sociedade do controle“), nos lembra que vivemos no biocapitalismo, e que nossa vida imita a leveza do dinheiro atual. Nosso dinheiro é só fiduciário (sem lastro ouro) e magnético. Ele se desvincula do trabalho, pois é gerado pelos bancos e no sentido de criar mais dinheiro através de operações financeiras. O capitalismo do crédito nos domina. Uma vez que o dinheiro é a mercadoria do momento, a mercadoria fetichizada, nós somos o reificados do momento tendo como espelho o dinheiro. Somos leves como ele. Ou ao menos queremos ser como ele! Deixamos a sociedade disciplinar estudada por Foucault (as disciplinas da fábrica, exército, escola, hospital etc.) para ocupar a sociedade da leveza das identidades e da pluralidade (neo) liberal, permitidas pela adoção de cifras (senhas), que nos colocam não mais como cidadãos ou trabalhadores, mas como usuários de plataformas virtuais, empresas virtuais, para que possamos oferecer nossos serviços. Entregamos pizzas para a classe média em ritmo de Covid, receitas farmacêuticas dadas por jovens médicos cujo pai não montou clínica, saberes para o laboratório (monopolista) transformar em vacina, dados pessoais para o Google e outras plataformas, preces e dízimos para igrejas milagreiras de todo tipo e, claro, poses eróticas denotando enormes falos introduzidos em rabos de senhoras de meia idade (ou qualquer outra imagem, até “ao vivo”) na indústria do visual pornô. Todos nós, adeptos do neoliberalismo, se temos internet e algum dinheiro, nunca mais sairemos do home office, mesmo saindo de casa. Esse é o mundo liberal desonerado. Nele, uma teoria do valor dada pelo preço parece a única teoria possível, ou seja, mostra-se como a “realidade da vida econômica”. Sim, em parte é a realidade. Pois a teoria, se hegemônica, molda o que ocorre.
Todavia, se temos um pingo de filosofia para nos ajudar, tudo isso se mostra como um modelo. Um modelo que está aí como parte do “espírito de época”. E para pagar tributo antes a Marx que a Hegel, posso dizer: um modelo dado pelo capitalismo financeiro que é o capitalismo tout court.
A tarefa da filosofia não é o ceticismo. A tarefa da filosofia não é entristecer. A tarefa da filosofia não é dizer, com ares de falsa autoridade, que o marketing mente (oh!). Se há alguma tarefa para a filosofia nesse mundo, talvez seja a de podermos colocar mais narrativas que as hegemônicas na praça, despertando a curiosidade dos que ainda estão aptos a ter curiosidade. Tenho me dedicado a isso nos últimos quarenta anos, ou mais.
Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo
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Olá, professor. Gosto muito dos seus textos e tenho um pedido a fazer: faça (ou delegue) uma revisão neles. Há alguns erros de digitação, creio q na pressa ou velocidade de digitação pra seguir o seu raciocínio, que torna um pouco difícil a um leigo como eu seguir a sua narrativa, porém esses erros não impedem a compreensão do texto apenas alguma frase ou outra fica com um “vazio”. Abraços e siga em frente porque estamos todos cansados mas não derrotados.
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