A intervenção de Bolsonaro na Petrobrás pode ser descrita por meio de um único adjetivo: populismo. A ideia é agradar “o povo”. Esta palavra, “povo”, indica quem? Não o cidadão e muito menos o cidadão crítico, mas o consumidor voltado para necessidades imediatas e com uma consciência política de um bagre.
Esse consumidor-arremedo-de-cidadão não pensa que sua vida poderia estar melhor se o país não tivesse destruído a malha ferroviária e se tivesse cumprido a agenda de construção do metrô. Ele também não imagina que royalties do Petróleo poderiam subsidiar sua passagem do metrô para o trabalho. Ele não se lembra que sem o ICMS cobrado dos combustíveis sua vida seria mais cara e mais difícil. O que ele quer é a satisfação de necessidades imediatas. Quer encher o tanque do carrinho que faz com que ele se imagine livre pela cidade. Não se lembra que perde quatro horas por dia no trânsito e que paga multas e mais multas. Sua vida é irracional, e ele adora isso porque não consegue imaginar outra.
Um presidente irracional que é o bagrinho agrada o pseudocidadão bagrinho. O populista consegue êxito porque ele é, em boa medida, igual ao cidadão acrítico que ele engana. Bolsonaro engana seu “povo” porque ele também se engana. Ele é o cara que quer encher de gasolina o carrinho. Tanto é que ele roubava gasolina quando era deputado.
Quem deve explicar tudo isso ao bagrinho? Quem deve ajudar o cabeça de bagre a ganhar consciência política? Os liberais? Eles não vão fazer isso. Os liberais vão ficar apenas na adjetivação contra Bolsonaro: populismo. E de quebra irão dizer: eis aí o “bolsopetismo”. Aproveitarão para fustigar Lula e o PT, acusando as esquerdas de defenderem a mesma coisa que Bolsonaro, o intervencionismo estatal. Estarão errados? Estão errados?
O que o PT e as esquerdas fizeram contra isso tudo? Vieram para a população explicar? Quanto tempo faz que as esquerdas oficiais, especialmente o PT, não explica mais nada para a população a não ser a terrível vida imoral do Moro contra a vida angelical e heroica do Lula?
E então, eis aí o termo “bolsopetismo” comendo solto!
A esquerda institucional fez o que, afinal? Apenas se revoltou no Twitter contra o termo “bolsopetismo”. Mas em nenhum momento os partidos de esquerda vieram para o público para tentar explicar se as esquerdas possuem ou não algo diferente para dizer que não seja “As estatais devem ter uma visão social” – frase usada por Bolsonaro, e que já foi usada por muita gente na esquerda. E alguns fizeram até pior, repetiram, sonhando com Ciro Gomes abraçado à barriga de Vargas, algo que também Bolsonaro falou: “o Petróleo é nosso”. Meu Deus, é muita “atualidade”, muita novidade!
A esquerda poderia lembrar que no mundo capitalista temos três modelos de exploração do petróleo: Arabia Saudita, Estados Unidos e Noruega. O primeiro modelo é o de exploração via companhia estatal, o segundo modelo é a exploração via iniciativa privada e livre, o terceiro modelo convive com várias companhias, mas possui uma estatal que administra um fundo. Este fundo é para “dias difíceis” e, também, para quando “o petróleo acabar” e os empregos gerados por ele desaparecerem – o que não está longe de ocorrer. Nossa matriz energética vai mudar em menos de vinte anos inteiramente.
O petróleo é sempre fonte de inovação, de conhecimento que se distribui pela sociedade e colabora com o saber difuso que temos hoje em dia nessa nossa época de pós-fordismo e de capitalismo cognitivo ou capitalismo biocognitivo. Trata-se de parte do General Intelect a que Marx se referiu nos Grundrisse, no célebre “fragmento sobre as máquinas”. O General Intelect aponta para um conjunto de saberes que a sociedade em rede possui e que permite com que cada país possa, a partir daí, às vezes em pouco tempo, arrancar soluções para problemas que, depois de solucionados, parecem terem sido inventados por um gênio solitário em um laboratório financiador. A vacina foi o caso. Ela é um trabalho coletivo de TODOS nós. Sem o saber difuso na sociedade, não teríamos como requisitar cientistas para fazer a vacina. Não aconteceria. Esse saber difuso aumentou muito durante a época fordista, quando a educação geral e pública se desenvolveu, e ele se integrou em rede agora, no pós-fordismo, graças às exigências do capitalismo biocognitivo que nos força trabalhar coletivamente, em rede, em sistemas de socialização de experiências e saberes.
A extração de petróleo nos leva a ampliar o saber social e as inovações. Garante, portanto, uma sociedade em desenvolvimento. Além disso, mobiliza empregos e negócios. Ora, se é possível, a partir de uma companhia mista e de capital aberto como a Petrobrás, ter tudo isso na sociedade e, além, ter também fundos do tipo do da Noruega, além dos nossos royalties e impostos que favorecem universidades, pesquisa, saúde pública, cuidado com o meio ambiente e cultura, por que não deveríamos ter o cuidado com tudo isso? Mas, para assim agir, para ter tudo isso funcionando a nosso favor, é preciso que a Petrobrás não deixe de dar lucro. Intervir nela aleatoriamente para fazê-la perder dinheiro e dizer “que se ferrem os acionistas”, desconhecendo que o país também é acionista, é uma imbecilidade.
Essa imbecilidade é a que as esquerdas que apoiaram Bolsonaro ou que ficaram em silêncio adotaram. E isso acabou por legitimar o termo “bolsopetismo”.
A esquerda para ser esquerda precisa sempre, diante da ideia de fazer o estado intervir no mercado, explicar o que significa isso. Vamos no rumo da democracia participativa ou simplesmente no rumo nacionalistóide do capitalismo de estado de Hitler? Se isso é confuso para o militante de esquerda, então irá ficar mais confuso ainda para o bagrinho. Veremos gente fazer aquele trajeto comum nos anos trinta: pessoas saindo do partido integralista para vir para as esquerdas e vice-versa. Esse foi o caminho de Dom Helder Câmara. Muita gente boa fez coisa assim no mundo todo. Era importante criticar o liberalismo e, então, ao adotar a ideia de intervenção estatal, muitos se perderam na falta de conceituação. Muitos acharam que se o estado tomasse conta de algo, então “o povo” estava no poder.
Ainda estamos nessa confusão? Se sim, então existe mesmo o bolsopetismo.
Em 1989, na campanha Lula Presidente, havia um item chamado “desprivatização do estado”. O PT não escreveu “estatização”. Naquela época, parecia que os petistas sabiam o que queriam. Passado os anos, o PT se esqueceu do termo e deixou a sociedade, e especialmente os liberais, aceitarem que um partido de esquerda apenas estatiza ou louva o estado. Ora, mas a direita hitlerista também estatizava. Não se faz diferença conceitual e prática nisso? Não digo diferença retórica, mas efetiva. Explicar qual o Brasil que se deseja e como a Petrobrás entra nisso tudo não é dizer “o petróleo tem de ser estatal”. Ficar nisso chancela a existência do termo “bolsopetismo”.
© Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo, 26/02/2021