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Economia e filosofia: nota sobre teoria do valor-trabalho e teoria marginalista

A economia trabalha com indagações sobre o valor. A filosofia indaga sobre o valor absoluto. A busca da filosofia pelo valor absoluto gerou a história de Platão e Protágoras. Nos tempos modernos, a busca da economia pelo valor gerou a história dos teóricos clássicos e dos marginalistas. A história da economia moderna espelha, em certo sentido, a história da filosofia.

Platão advogou que o Bem, o valor absoluto, reinava por ele próprio em mundo só dele. Se os homens quisessem alcançá-lo deveriam se preparar para abandonar o mundo afeito aos sentidos e se encaminhar para um esforço de se deixarem banhar pelo que é puramente intelectual. Em oposição a Platão, Protágoras disse que “o homem é a medida de todas as coisas”. Desse modo, não haveria algo como o Bem, um valor absoluto, mas apenas os processos valorativos forjados por cada um dos indivíduos humanos.

Os clássicos da economia – Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx – advogaram, ainda que de modo significativamente diferente entre si, que o valor é dado pelo trabalho dispendido na produção das coisas. Em oposição aos clássicos, os economistas chamados de marginalistas, no final do século XIX e entrada do XX, disseram que o valor está no olho de quem vê, e que este olho mensura a utilidade.

Assim, para os clássicos, o valor das mercadorias, uma vez dado pelo trabalho, não era o preço das mercadorias, mas estava na sua origem. Para os marginalistas, inversamente, o preço, uma vez dado pela utilidade de algo, era exatamente o que poderia ser chamado de valor. Os clássicos forjaram uma teoria objetiva, de caráter platônico; os marginalistas forjaram uma teoria subjetiva, mais afeita a uma herança deixada pelo relativismo de Protágoras.

À primeira vista, ficaríamos tentados a dizer que os clássicos, com o seu platonismo, ou melhor, seu objetivismo, estiveram do lado da ciência, enquanto os marginalistas, com o seu subjetivismo, criaram uma economia pouco capaz de ser chamada de científica. Engano. O que ocorreu foi quase o contrário disso.

Os marginalistas tomaram o preço como fruto da utilidade, ou seja, da lei de oferta e procura, e se embrenharam pela ideia de que podiam calcular tais coisas, uma vez que cada homem agiria racionalmente nas suas escolhas. Uma barra de chocolate tem valor quando estou com fome, mas meia barra de chocolate tem mais valor quando tenho mais forme. Desse modo, meia barra se torna mais útil. A escassez dá o sinal para a régua da utilidade. Calcular a escassez matematicamente seria o modo de fazer economia cientifica.

Por sua vez, o trabalho dispendido na mercadoria, em especial na acepção de Marx, que fala em “trabalho socialmente necessário” para a produção da mercadoria, daria um valor de difícil cálculo. Além disso, em um mundo como o nosso, em que o trabalho depende cada vez mais da ciência, e que muitos produtos são tão intangíveis quanto a própria ciência, a ideia de mensurar o trabalho teria sua força diminuída. Muitos acreditaram que poderiam abandonar as teorias do valor baseadas no trabalho exatamente por causa dessa sua indisposição diante da mensuração. Nesse sentido, o correto então seria ficar com os preços, fáceis de notar e mensurar, e lhes dar a condição de valor. Nessa linha, então, o marginalismo e Protágoras teriam vencido Marx e Platão.

Na verdade, do mesmo modo que é difícil optar por Platão ou por Protágoras, tudo se complica também quando temos que optar por uma ou outra teoria do valor. A teoria marginalista nos coloca no mundo fácil de ver oferta e procura. Mas ela nos põe com um sabor amargo na boca, pois a impressão que temos é que sua igualação entre preço e valor deixa escapar alguma coisa importante. Se o valor está nos olhos de quem vê, e o trabalho humano não conta em nada para se falar na produção de riqueza, uma das noções que divide águas no mundo econômico, que é a produtividade, perderia o sentido? Ser produtivo, ou seja, tornar a terra mais equipada de riquezas, não seria ampliar o valor! Uma acepção assim parece ser completamente anti-intuitiva.

Quando tomamos as coisas nessa ótica, percebemos que a teoria clássica atrai o marginalismo e vice-versa, do mesmo modo que, na antiguidade, Platão e Protágoras não vieram separados.

© Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo. 22/02/2021

Karl Marx