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Do ânus tatuado da Anitta aos ideólogos da direita

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Anitta teve uma infecção intestinal. Atuou dias pelo ânus. Foi assunto da mídia. Terminada essa etapa, ela voltou a usar o ânus para marcar presença. Fez uma tatuagem no dito cujo e, naquela técnica manjadíssima e sem graça, deixou o vídeo do trabalho “vazar” na Internet. Gritando “caraaalhooo” e com todo a bunda eufórica para cima, ela apareceu sobre uma mesa, com o tatuador fazendo a sua obra em volta da portinha de defecção, estripulia e amor. Um clipe da Anitta custa milhões para ser feito. Rende milhões. Esse clipe (aliás velho) teve zero custo e vai lhe render talvez mais dinheiro que muitos outros. Colabora sobremaneira para mantê-la em evidência.

Se levarmos a sério o livro A sociedade do espetáculo de Gui Debord, escrito nos anos 60, podemos nos inspirar para dizer que a vida desse tipo de celebridade, como a Anitta, exemplifica o modelo posto pelos tempos modernos para todas as nossas vidas. Estamos imersos na produção de imagens e não temos como viver senão produzindo mais imagens. O império do mundo da mercadoria, como descrito por Debord na esteira de Marx, nos fez pessoas que perderam o controle de suas produções, e que por isso mesmo se acostumaram a ver suas obras voltarem à cena para nos dar comando. Sapatos, carros, ações da bolsa, dinheiro, mulheres nuas e tudo que pode ser mercadoria é produção nossa. Mas uma vez saída das nossas mãos, reaparecem para nos dizer o que fazer. Adquirimos então uma estranha capacidade de seguir e obedecer tais elementos. Primeiro eles aparecem por eles mesmos, depois aparecem em imagens que são símbolos deles próprios: as marcas. Cria-se até grupos de fãs de marcas! Em uma sociedade assim, Debord concluiu que não estávamos mais sob a dicotomia celebrada pela filosofia tradicional, a questão do ser e do ter. Estaríamos vivendo sob a égide do aparecer.

As celebridades vivem da imagem e para a imagem. Todavia, elas são apenas a ponta do iceberg. Em uma sociedade como a nossa, será que esse não é o comportamento tendencial de todos nós? O nome “Face-book” não diz tudo? Uma rede social cujo nome exige que nos apresentemos segundo uma imagem. Essa imagem é “face”, que pode ser inventado. Ao mesmo tempo, é uma identidade A = A. Isto é: este “face” da imagem posta é de fato a minha “cara”. A cara que escolhi. A imagem com a qual eu digo que sou alguém. Transformo-me em marca para poder existir. Se assim não faço, careço de qualquer status ontológico.

Quando penso nessas transformações descritas e teorizadas inicialmente por Debord, me vêm também à mente um outro texto, o pequeno texto “O silêncio das sereias”, de Kafka. Neste texto o escritor insinua que Ulisses jamais viu sereia alguma e que, de fato, ele sabia que nada via. No entanto, ele havia se preparado para o evento. Além disso, havia preparado todos ali no barco para a imagem, para o espetáculo no qual ele venceria as sereias com o seu truque de cordas e ceras. Estava de tal modo envolvido no espetáculo que deveria ocorrer que, em determinado momento, passou-lhe pela cabeça a possível decepção. E se as sereias não viessem? Então, ele, como herói, simplesmente deixaria de existir. Não seria o Ulisses chamado de velha raposa, de astuto, e então não seria alguma coisa senão uma marca desgastada. Fazia-se necessário criar o espetáculo caso ele não ocorresse. Então, Ulisses passou pelas sereias gritando e gesticulando, com olhos esbugalhados, como se elas de fato tivessem estado ali e cantado sua sedução. Se elas estiveram ou não, ele não teve atenção para ver, pois estava entretido demais, narcisisticamente, com a sua própria encenação.

Peter Sloterdijk não concorda com os filósofos frankfurtianos, que qualificaram Ulisses como protótipo do homem moderno por ele ser um melancólico. O filósofo alemão viu no herói da Odisseia um homem moderno por causa deste lhe parecer um homem histérico. Ulisses é um de nós à medida que somos todos muito candidatos à histeria, isto é, ao teatro a respeito de nós mesmos. Somos os que precisam produzir imagens porque só as imagens são algo do mundo, e só elas nós garante que fazemos algo útil e vivemos em algum lugar. Somos narcisos histéricos: teatralizamos a nós mesmos como quem segue mandamentos.

A ascensão da direita nos anos noventa, tanto na sua versão inicialmente neoliberal e Yuppie, e enfim, no século XXI, na sua versão populista, de Trump e Bolsonaro, trouxeram para a política essas duas características da modernidade. A vida sob imagens e a vida sob imagens teatrais a respeito de si mesma. Narcisismo histérico.

Penso que essa narrativa que forneço é plausível. Pois esses movimentos de direita geraram uma plêiade de pseudo-intelectuais que se esmeraram em divulgar imagens cada vez mais estapafúrdias, todas elas feitas a partir de teatralizações, de típicas condutas histéricas e narcisistas. Elas permaneceram pairando no ar exatamente pelo seu caráter “fora de propósito”. Foi assim que pessoas como Steve Bannon nos Estados Unidos inventou um Obama não americano e, depois, com o QAnon, um Biden pedófilo. Foi assim que um Olavo de Carvalho conseguiu ser terraplanista e, ao mesmo tempo, virar guru de presidente e até nomear ministros. Foi assim que um Pondé, mesmo não sabendo física básica e fazendo vídeos de homenagem ao terraplanista Olavo, manteve-se colunista de jornal proliferando frases de mágoa contra todos os que lutavam por um mundo melhor. O não-razoável, narcisista, histérico e grotesco infestou nossa mídia. Todo teatro de si mesmo, típica de gente como Pondé, Olavo, Bolsonaro e outros assim, passou a ser tomado como alguma coisa válida, que poderia ter espaço na vida política. A ignorância não tinha mais que ser avaliada. A mentira e a verdade não tinham mais sentido. As imagens esdrúxulas passaram a contar segundo o número de “likes” ganhos.

Eis o mundo novo da direita: o MBL, o Pondé e seu mestre Olavo, as prisões da Lava Jato, o non sense chamado Bolsonaro e coisas similares. Foi exatamente esse mundo que pegou o pensamento de esquerda desprevenido. Acostumados aos textos argumentativos e ao poder da bipolaridade da proposição, que nos dá o verdadeiro e o falso, o pensamento de esquerda, sempre muito calçado na formação universitária, desconsiderou o poder da nova barbárie gerada pela direita. Não soube lidar com o excesso de imagens ridículas do teatro narcísico de si mesmo. Deu de ombros aos ideólogos da direita como ainda dá de ombros diante das imagens que Anitta produz. E foi assim que Trump chegou à presidência e pretende voltar. E foi assim que Bolsonaro chegou à presidência e quer ficar. O ânus da Anitta e o cérebro dos ideólogos da direita possuem a mesma função. E eles ainda estão dando o tom para o nosso tempo.

A esquerda e as pessoas racionais talvez tenham que notar que gente como Olavo, Pondé, Bolsonaro e também Luciano Huck podem ter tatuado no ânus “Make America great again”. Reze para eles não quererem mostrar.

© Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo. Campo Grande 21/02/2021