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Bolsonaro e o Fazendão Chinês

Em 2021 não houve Carnaval. O Bolsovírus foi o responsável pelas férias forçadas de Momo. Talvez por isso mesmo, por conta do adiamento da folia, Bolsonaro quis recompensar. A partir da Quarta-Feira de Cinzas, seu bando começou a agitação. Mas não foi com pandeiro e confete, e sim com o “samba do crioulo doido”. Ou melhor: samba do deputado bombadão doido. Para completar o quadro, em seguida Bolsonaro fez uma intervenção na Petrobrás, causando enorme prejuízo à companhia no mercado de ações. Desastre duplo.

O deputado Daniel Silveira soltou um vídeo de ataque aos ministros do STF. Ele já vinha de episódios semelhantes. Além disso, estava na mira das investigações do STF a respeito de fomento a atos contra a democracia. Através do ministro Alexandre de Morais o deputado foi preso. Os bolsonaristas chiaram nas redes sociais. Tentaram vitimizar o neofascista. Jornalistas de direita, reconhecidamente fracassados, como Augusto Nunes e Lacombe, tentaram reverter as coisas. A ideia era influenciar o Congresso de modo que este, na votação para decidir sobre a manutenção ou não da prisão do deputado, houvesse chance de sua libertação. O argumento era pela ideia de que Silveira estava exercendo direito de opinião e que estava respaldado pela imunidade parlamentar. Não colou. O congresso votou em peso pela manutenção da prisão, mesmo com o bolsonarista se humilhando e pedindo perdão.

Alguns chegaram a falar que Silveira não poderia ser “preso em flagrante”. Não haveria flagrante em vídeo gravado. Mas essa interpretação é velha e não cabe mais em nossos dias. O tempo e o espaço estão encurtados nos dias hoje, por conta da Internet. Algo tem de ser admitido como presente porque algo é presente se, estando em gravação, mobiliza a realidade como se estivesse em tempo presente. Os vídeos do deputado estiveram funcionando nesse sentido, e ele foi preso de maneira correta.

Bolsonaro foi aconselhado por Arthur Lira, presidente do Congresso e membro do Centrão, a não intervir no “caso Silveira”. Ele manteve silêncio e entregou a cabeça do seu soldadinho a leões do Congresso e, claro, as hienas também. Mas assim agiu contrariado. Bolsonaro sempre teve uma vocação miliciana, adora agradar os grupos que lhe são fiéis. Não podendo agradar um, tentou logo em seguida o outro: os caminhoneiros. Interveio na Petrobrás, colocando em seu comando um general que, até então, estava na chefia da Itaipu Binacional. (Um general cujo currículo mostra grandes favores não a nação, mas a ele próprio.) A ordem expressa foi a de baixar o preço dos combustíveis, especialmente a gasolina. Medida populista, claro, e que não irá se realizar. Em uma empresa de capital aberto, qualquer intervenção nesse sentido é prejuízo na certa.

A imprensa, quase toda ela favorável ao neoliberalismo, soltou seus artigos contra o presidente. Falaram por razões pouco nobres: a velha lenga-lenga de apologia da economia de mercado. Atiraram no que viram e acertaram no que não viram, ou melhor, acertaram no que sabem que existe, mas que nem sempre é preciso falar. Na verdade, Bolsonaro não pode ir adiante mais do que foi nas reformas neoliberais de Paulo Guedes, pois isso macula os interesses do Centrão quanto a ocupar cargos no estado, em especial nas estatais. O problema é que as cadeiras executivas das empresas estatais e da máquina burocrática governamental parecem estar destinadas às bundas militares. Bundas grandes. Cadeiras menores foram deixadas para bundinhas, a dos políticos. São eles que bancam o não-Impeachment de Bolsonaro, mas ainda assim Bolsonaro não os vê com bundas apetitosas e merecedoras para além das dos militares.

Como entender tudo isso? Posso colocar aqui a minha colher. Eis abaixo a minha narrativa de apoio, para que o leitor crie outras.

Após as eleições municipais Bolsonaro passou a governar nitidamente no equilíbrio de duas canoas, cada uma abrigando uma de suas pernas.

A canoa explicitamente conservadora, de ideais que beiram o capitalismo fechado de Trump e Steve Bannon, e que possui ares neofascistas, pertence à política do populismo de direita. O deputado Silveira veio dessa linhagem, que teve em Olavo de Carvalho seu guru, às vezes ajudado por outros, como os Pondé e Allan Santos da vida.

A canoa neoliberal, que é privatizante e joga em favor da globalização capitalista e, quando interessa, também em favor da democracia liberal representativa, pertence aos que possuem no governo a figura de Paulo Guedes. Ele sempre foi o elemento de aval, vindo dos empresários, ao governo Bolsonaro. A maior parte da Fiesp apoiou Bolsonaro. Além disso, Paulo Skaf, o presidente da Fiesp, se disse honrado ao vir a pertencer ao Conselho da República por convite e nomeação de Bolsonaro. Nessa linha de apoio é que o capital financeiro pegou assento no governo.

Cada um desses grupos sociais, seja o do Silveira quanto o do Skaf, possui seus intelectuais. São os intelectuais orgânicos, para lembrar a velha terminologia de Antônio Gramsci. Eles, esses intelectuais, são ideólogos de todo tipo. Alguns nem poderiam ser chamados de intelectuais, pois são desescolarizados, como o caso do Olavo de Carvalho, mas outros possuem seus doutorados, inclusive em escolas americanas, e Paulo Guedes e boa parte dos jornalistas e economistas que falam na TV ou na Folha de S. Paulo e jornal Estadão formam um e mesmo time. Essa imprensa liberal ou neoliberal, mais ou menos voltada para a democracia representativa, se desespera diante de Bolsonaro e sua intervenção na Petrobrás.

Esse desespero é apenas o sintoma da autonomia relativa desses intelectuais. Eles se imaginam tendo ideias próprias, mas apenas representam os setores da elite empresarial financeirizada no Brasil. Essa falsa autonomia aparece claramente agora: os intelectuais chiam, mas a própria classe a qual eles representam não está contra Bolsonaro. Pois o presidente mexeu na Petrobrás prejudicando uma estatal, e não mexeu em nada nas regras do capitalismo financeiro que comanda o Brasil. Se o dólar variar por conta dessa mexida, isso irá fazer parte do jogo, e as elites não reclamarão. Por isso, se uma Miriam Leitão reclama, podemos saber que ela estaria fazendo eco a um Paulo Skaf da Fiesp, mas, no momento, só aparentemente ela está assim agindo. Trata-se de um eco sem grito original. Pois a FIESP não acredita que Bolsonaro vá fazer algo no sentido de algum investimento estatal de desenvolvimento, ou mesmo de ajuda aos mais pobres efetivamente. Em outras palavras, Bolsonaro vai continuar com o aperto fiscal e vai tentar ganhar votos pelo populismo, pelas bravatas. Se não teve como usá-las no caso Daniel Silveira, veio a usá-las para dizer que vai tornar a gasolina mais barata (o que seria um desastre ecológico).

Um dia após a intervenção na Petrobrás, os economistas e os jornalistas liberais escreveram sobre uma “guinada não liberal”. Mas a classe que os abençoa, ela própria, não abençoou a campanha pelo Impeachment. A maior parte dos empresários não se desalinhou de Bolsonaro. Para esses setores, a imprevisibilidade de Bolsonaro sempre foi bastante previsível. Bolsonaro não destoou nem um pouco do perfil que os empresários, agora todos imersos na financeirização, traçaram como sendo o “presidente ideal”. O Brasil tem caminhado firme para ocupar o seu posto na divisão do trabalho internacional. As folias de Bolsonaro não mexeram nem um pouco no Brasil financeirizado que está se tornando em um tipo de fazendão da China.

Na divisão internacional do trabalho o Brasil parece se delinear como o local de fornecimento de comodities para o capitalismo chinês, que ainda produz sapatos, enquanto o capitalismo mais avançado produz informações (Google), remédios e vacinas (Pfizer e outras), tecnologia (Microsoft) e dinheiro (capitalismo financeirizado em favor de Wall Street).

Campo Grande, 21/02/2021

© Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo

 

fazendão chinês