O jornalista Boechat faleceu após acidente de helicóptero. Ele vinha de Campinas, onde havia estado para dar uma palestra nas dependências do Laboratório Libbs, um dos maiores do mundo. O laboratório contratou um péssimo serviço de voo. A aeronave tinha problemas e não fornecia condições de trabalho razoável. A morte do jornalista não foi uma fatalidade. Ela se deu por culpa da empresa.
Durante dois anos a família de Boechat e o Laboratório Libbs ficaram em tratativas a respeito de um dinheiro que o Laboratório Libbs pagaria para uma filha de Boechat, que vive sob tratamento médico. Boechat gastava mais de 20 mil por mês com essa filha. Após dois anos empurrando com a barriga, o riquíssimo Laboratório Libbs resolveu judicializar o assunto. Segundo o jornalista Elio Gaspari, que conta essa pequena história, esse Laboratório ostenta o lema “empresa inspirada pela vida”.
O drama da família de Boechat é o drama de muitas famílias. Entre elas, há as famílias que nem mesmo podem pensar em procurar advogados. Nem sabem como. No entanto, deveríamos indagar se laboratórios (e outros empresas) de fato têm o direito de cobrar por medicamentos do modo como fazem. Em que medida o que produzem é só deles? Por que podem ficar cada vez mais ricos, e mais mesquinhos?
A narrativa que coloco aqui visa se contrapor às narrativas dos laboratórios (e outras empresas) que dizem que o que produzem é caro, e por isso põe seus preços finais elevados. Atentando para a história do capitalismo, podemos fornecer nossos argumentos.
Não existem grandes laboratórios fora do capitalismo. O modo de vida gerado pelo capitalismo gerou a ciência moderna e as tecnologias. Por isso mesmo, os saberes contidos em um remédio, como em muitas outras criações humanas, não são criações individuais. Os remédios aparecem com preço alto, mas isso não se justifica. Eles não são obra de esforço individual e investimento, mas de pouco esforço e reunião de saberes prontos.
Foi o modo colaborativo de trabalho, de troca necessária de informações, que se estabeleceu a partir do pós-fordismo (1970), juntamente com a difusão da escola pública elaborada graças ao fordismo (pós século XIX e principalmente pós II Guerra), que gerou o saber necessário para a criação de remédios. Nesse sentido, inventar que determinado remédio é um “achado” de alguns, e que se pode sobre ele estabelecer a propriedade privada, ou seja, a patente, é uma narrativa pouco honesta. Pegar o saber social, cercá-lo por conta da força do capital, e submeter todas as pessoas a comprarem o remédio por preços colocados pela indústria farmacêutica a seu bel prazer, é uma expropriação.
Os laboratórios e muitos outras indústrias que vivem do “General Intelect” (Marx) fazem com o saber aquilo que Rousseau falou que o homem criador de desigualdade fez com a terra: cercou a terra que era comum e disse “isso é meu”. O capitalismo faz isso com nosso saber, que nós produzimos e nós distribuímos no trabalho colaborativo. Afinal, não há trabalho hoje que não seja colaborativo. Estamos diante do paradigma linguístico e comunicativo no trabalho. Trabalhamos somente na medida que trocamos informações, e estas se acumulam nas redes. Então, é errado pensar que alguém pode cercar essa nossa produção linguística coletiva e colocar nela um preço para nós mesmos.
Por isso, seria justo não só um salário para todos, independente de estarmos empregados ou não, mas também seria justo uma distribuição de remédios e vacinas de modo completamente gratuito, especialmente para os mais pobres.
A injustiça contra a família do Boechat pode ser revertida na justiça. A injustiça dos laboratórios (ou do Google, com saberes informativos) para conosco pode ser revertida pela instauração de uma outra justiça.
© Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo. Campo Grande 21/02/2021